terça-feira, 9 de março de 2010

CAUSOS DE VIAGENS



INTRODUÇĂO
Estas crônicas são uma coletânea de fatos isolados, divertidos, curiosos, misteriosos ou acidentais, ocorridos ao longo de quinze anos de profissão à frente de grupos como guia de excursões turísticas, ou em minhas viagens particulares pelo Brasil e pelo mundo. Todos os nomes das pessoas envolvidas foram alterados, para evitar constrangimentos. Os locais e épocas são reais, bem como as situações inusitadas.
A ideia inicial é que praticamente todas as situações inesperadas, embaraçosas ou desagradáveis, mudam de sabor ao longo do tempo, podendo tornar-se cômicas, dependendo da maneira como são narradas. Afinal, de que seriam feitas as anedotas, senão da caricatura de pequenos dramas cotidianos? É este o espírito deste trabalho; se você identificar-se com algum dos personagens, aproveite para rir agora de algo que já o incomodou, exorcizando todo o mal.
O BANHO DE ESPUMA
Aconteceu em Caldas Novas, Goiás, a famosa estação termal que atrai milhares de turistas de todo o Brasil todos os anos, por causa dos efeitos benéficos das águas quentes que vêm das profundezas. Estas águas têm propriedades minerais e radiativas que amenizam problemas gerais como o reumatismo e ajudam no embelezamento da pele, através de banhos; ou corrigem distúrbios gástricos por ingestão, além de ser poderoso afrodisíaco.
Costumávamos chegar lá um pouco antes das oito da noite, após visitar Araxá, a famosa terra de Dona Beja no Triângulo Mineiro, onde passávamos o dia. São Domingos do Araxá já foi a maior e mais importante cidade do Triângulo, Sertão da Farinha Podre à época em que lá viveu Ana Jacinta de São José, a Beja. A cidade tornou-se muito conhecida pelas propriedades rejuvenescedoras das águas sulfurosas da fonte do Barreiro, hoje Fonte da Beja, onde ela se banhava diariamente para cuidar de sua invejada beleza.
Na década de quarenta, o Presidente Getúlio Vargas fez construir no Barreiro um imenso e luxuosíssimo hotel-cassino, com um sofisticado centro hidroterápico para tratamento de diversos males. Infelizmente, o caríssimo palácio não viveu muito tempo de esplendor, o Presidente Eurico Gaspar Dutra logo proibiu o jogo no país, fechando os cassinos e levando o Grande Hotel e Cassino de Araxá ao quase total abandono em que se encontrava na época narrada nesta crônica.
No centro hidroterápico do hotel, as águas sulfurosas do Barreiro são misturadas à lama local e aquecidas para os banhos. Alguns produtos artesanais são preparados com esta mistura e comercializados para os turistas que visitam o complexo. Entre eles, sabonetes e sais. Passando o dia em Araxá, muitos de nossos excursionistas adquiriam grande quantidade destes sabonetes de lama sulfurosa, que deixam a pele aveludada.
Na chegada ao hotel em Caldas Novas, desembarcávamos o grupo, conduzindo imediatamente os passageiros ao restaurante, onde os funcionários só nos esperavam para servir o jantar e encerrar o expediente. Enquanto os paxes[1] eram servidos, o guia dirigia-se à recepção, onde registrava o grupo, endereçava as bagagens para os apartamentos e apanhava as chaves, indo entregá-las em cada mesa no restaurante. Desta forma, ao final da refeição, quando chegasse a seu apartamento, cada turista já lá encontraria suas malas.
Os banhos nas piscinas de águas quentes, ao ar livre, são especialmente recomendados para a noite, pois, sob sol quente, a pressão arterial pode subir muito. Assim, as piscinas dos hotéis começam a encher a partir do final da tarde, e permanecem movimentadas até quase uma hora da madrugada. Durante os dias, se fazem passeios, como à Lagoa Quente, à Pousada do Rio Quente, ao Jardim Japonês, ou para compras de artesanato pela cidade.
Para chegar ao restaurante do hotel que utilizávamos, tinha-se que atravessar o prédio da recepção e o jardim das três piscinas, passando ao longo destas até a escadaria de acesso ao mesmo, na extremidade oposta do jardim. Os proprietários do hotel tinham um animal de estimação incomum, que vivia solto pelo jardim e dormia sobre os galhos de alguma das árvores do local. Era uma seriema, ave típica daquela região usualmente seca, de vegetação baixa e retorcida, do Planalto Central.
A seriema é parecida com uma ema, em tamanho menor. Adulta, chega a atingir entre setenta e oitenta centímetros de altura; tem o pescoço comprido e ágil, o que faz dela uma exímia caçadora de cobras, comuns pelo cerrado. Os agricultores do Planalto costumam soltá-las nos matagais antes de roçá-los, para certificar-se de que não haverá cobras quando ali forem trabalhar. Por possuir esta habilidade com o pescoço e o bico, a seriema instintivamente apanha tudo o que encontra e sai arrastando, deixando em outro lugar ao desinteressar-se.
Em volta das piscinas do hotel, esta ave de estimação chegava a causar algumas confusões, carregando de um lado para outro toalhas, chinelos, bolsas e outros objetos dos hóspedes, enquanto estes estavam distraídos de molho. Outra característica desta estranha ave caçadora é a troca de suas penas, que ocorre uma vez por ano. A seriema arranca com o bico e ingere quase todas as penas do corpo, dando lugar à nova plumagem que começa a surgir depois de algumas semanas.
Naquele dia de primavera de mil novecentos e oitenta e oito, tivemos uma soma de pequenos retardos, chegando ao hotel às oito e meia. Eu sabia que os funcionários do restaurante deviam estar impacientes, pois o proprietário do hotel não pagava horas extras e todos queriam ir para suas casas. Um pouco antes da chegada, convoquei a solidariedade do grupo no sentido de agilizar o desembarque e seguir-me prontamente para o restaurante.
Logo que entrei pelo jardim, apressadamente liderando o grupo, tendo as piscinas à minha esquerda, reparei duas coisas: a primeira habitual àquela hora, havia muitos hóspedes de molho nas piscinas fumegantes; a outra chegou a causar-me um certo choque, a seriema tinha apenas uma meia dúzia de penas por todo o corpo. Imagine como pode ser feio um bípede alado, de uns sessenta centímetros de altura, com um pescoço comprido, ostentando uma pena aqui e outra ali. Lembrei que não havia mencionado aquela atração para meus paxes, mas não havia mais tempo para isto, eles teriam que vivenciar a surpresa.
Atravessei o jardim a passos largos, com o braço direito erguido em movimentos como se nadasse no ar, parando de tempos em tempos para apressá-los. Era uma longa e estranha procissão, cada um levando suas valises de mão e sacolas de compras, passando bem ao lado das três piscinas. Quando galguei os degraus e atingi o patamar superior, parei para a última chamada, vendo que uma senhora do grupo tinha parado ao lado da última piscina. Ela estava recurvada para dentro, perguntando alguma coisa aos hóspedes que estavam na água; trazia penduradas nos braços sua bolsa de viagem e duas sacolas repletas de sabonetes da lama do Barreiro, que adquirira na intenção de ficar mais bela.
Vi quando a seriema pelada aproximou-se dela por trás e puxou o fundo de uma das sacolas. A mulher nem se voltou, só puxou de volta a sacola, na certa julgando tratar-se de alguém do grupo apressando-a. A seriema, contudo, pareceu não gostar da reação e tornou a bicar e puxar com mais força a sacola. Neste momento, a mulher ainda recurvada para a frente virou a cabeça para trás à esquerda, de onde vinham os puxões, parecia querer reclamar com quem a puxasse, mas não teve como. Partiu como um foguete da Nasa quando a contagem chega a zero, com um longo grito gutural passou voando sobre as cabeças das pessoas com quem conversava, mergulhando a seguir uns dois metros adiante de onde estivera.
Foi triste, para não dizer hilário, o grupo todo apinhou-se ao lado da piscina e todos só faziam retorcer-se de rir. Os banhistas ajudaram-me a içar da água a senhora, que fumegava mais do que a piscina e recolheram o que puderam de seus pertences encharcados. As sacolas, de papel, tinham-se desfeito rapidamente, espalhando os sabonetes de lama que não levaram muito tempo para fundirem-se nas águas quentes, o que obrigou o hotel a esvaziar aquela piscina para ser lavada a jato com um compressor. E o pior é que eu tinha assistido à cena toda de camarote, mas não podia rir.
Objetos pessoais, documentos e o dinheiro da vítima foram colocados para secar junto ao aparelho de ar condicionado de seu apartamento e ela levou muito tempo para acalmar-se; mas quem não se acalmou mesmo, foram os funcionários do restaurante, que acabaram adicionando hora e meia não remunerada a seu dia de trabalho mal remunerado.
PIRĂO DE SIRI
Nossas excursões rodoviárias saíam do Rio de Janeiro às sete da manhã, com a parte do grupo oriunda do Rio e dos estados do nordeste. Os demais paxes que completavam o grupo embarcavam em São Paulo às três da tarde, quando a excursão rumava para o sul, ou na manhã seguinte, quando seguíamos para o noroeste. De qualquer forma, em média levávamos cerca de metade da lotação até a capital paulista. Às vezes eram tão poucos paxes neste trecho, que juntávamos duas excursões num mesmo ônibus, seguindo o outro atrás, vazio, até São Paulo, para garantir mais animação a bordo neste primeiro trecho.
O trecho inicial era pela Rio-Santos, ao longo da belíssima Costa Verde, de Mangaratiba a Caraguatatuba. O guia apresentava a tripulação e o equipamento rodante, fazia algumas pequenas considerações iniciais até a avenida Brasil e desligava o microfone, deixando uma melodia suave. Então servia um café com biscoitos para deixar que as pessoas que tinham acordado tão cedo relaxassem um pouco, só tornando a falar quando já estivessem em Mangaratiba.
Quando não juntávamos grupos e tínhamos no máximo meia lotação, alocávamos todos na metade da frente do ônibus, para possibilitar um maior entrosamento inicial. Assim também podíamos dispensar o uso do microfone, deixando os mais cansados dormir em paz.
A primeira parada era na usina atômica, em Angra dos Reis. Ali havia toaletes decentes num centro de visitação, onde os turistas recebiam informações sobre o funcionamento da usina. De volta ao ônibus, seguíamos direto para Parati, para um passeio a pé por sua área histórica tombada e preservada. Durante o passeio, visitávamos as antigas igrejas, caminhando pelas ruas de calçamento original em pedras irregulares. Contávamos aos turistas detalhes fascinantes sobre a história da cidade, como as táticas de defesa contra os frequentes ataques de piratas, que vinham tentar roubar o ouro que descia das Geraes e ali permanecia à espera de transporte para Portugal; ou ainda como os escravos negros escondiam ouro nas carapinhas, para poder construir suas igrejas, ou comprar suas alforrias.
Saindo de Parati, entrávamos no estado de São Paulo e logo chegávamos a Ubatuba, o movimentado balneário paulista onde o padre José de Anchieta foi mantido como refém pelos índios Tamoios e escreveu os versos de seu poema à Virgem Maria com uma varinha na areia da praia.
Em Ubatuba, tínhamos um almoço memorável: filé de peixe ao molho de camarões, acompanhado de pirão de siri. Só de lembrar, minha água se enche de boca... ou será o contrário?! E a pimenta que era servida, então! Aquelas saborosas gotas de fogo puro. Havia ainda uma barrica de pura pinga de alambique, para que os clientes pudessem aperitivar à vontade. Era difícil de resistir a tamanhas tentações e não cometer o pecado da gula, quase impossível mesmo. As garçonetes tinham que trazer mais e mais travessas do bendito pirão para as mesas, era uma festa.
Depois deste lauto banquete à beira mar, passávamos pelo próximo balneário, Caraguatatuba, Caraguá para os paulistas. Depois, subíamos a rodovia dos Tamoios, que vai até a Presidente Dutra, na altura de São José dos Campos, dali direto ao centro da paulicéia. Era difícil de não dormirem todos os paxes na subida da serra, depois de terem acordado tão cedo e devorado todo aquele pirão de siri. Eu costumava ficar em pé, com o braço direito seguro à coluna à direita do motorista, conversando baixinho com um ou outro insone, a mostrar-lhes as belíssimas vistas a cada curva.
Nossos ônibus não chegavam aos pés das modernas naves que levam os turistas pelo Brasil de hoje, mas eram o máximo para a época; tinham suspensão a ar, o que significa que a carroceria estava presa ao chassis por quatro balões de borracha cheios de ar, com válvulas comandadas por varetas ligadas à suspensão principal e a um compressor. O sistema funciona automaticamente, se os pneus sobem uma saliência na pista, a vareta abre a válvula do balão sobre aquele pneu, fazendo-o esvaziar o suficiente para absorver o impacto. Ao contrário, se o pneu cai numa depressão, a vareta aciona a válvula de entrada de ar do compressor, fazendo o balão encher mais, compensando a queda. Desta maneira, a coluna vertebral de quem está viajando por horas, sentado dentro do ônibus, não é diretamente afetada pela irregularidade da pista.
Mas estes balões são de borracha e por mais resistentes que sejam, são tão passíveis de estourar quanto um pneu e tão ou mais difíceis de substituir quanto estes, num ônibus. Há balões de reserva, assim como pneus, mas leva-se bem uma hora para trocar uns ou outros; por isso, os motoristas são mais cuidadosos ainda em relação aos “raros” buracos de nossas rodovias.
Estávamos no início de mil novecentos e oitenta e sete, fazia calor lá fora, mas o ar condicionado estava confortável; uma fita cassete de suaves melodias ao piano tocava baixinho, a metade traseira do ônibus estava deserta e eu conversava com um casal da primeira fila, ao lado da porta. O motorista subia firme, curvando macio à esquerda e à direita pela estrada retorcida. Um cidadão da quarta fila acordou, levantou-se e tomou o rumo do toalete, no fundo do carro, à esquerda de quem olhasse. Ele entrou e fechou a porta, mas não a trancou, isso porque não se acendeu o letreiro luminoso no teto acima dela. A palavra “OCUPADO” se acendia no letreiro toda vez que a porta fosse trancada por dentro. Eu havia feito a recomendação pela manhã, mas era bastante natural as pessoas não gravarem, principalmente no primeiro dia. Meu conselho era de que trancassem a porta por dentro para evitar o famoso “Opa!”
Como o ônibus estivesse com poucos excursionistas e quase todos dormissem àquela hora, fiquei apenas cuidando para evitar que outra pessoa tentasse entrar enquanto o homem lá estivesse. Continuei conversando com o casal sem outras preocupações, estávamos no horário, eram uma e trinta, às três estaríamos no largo do Arouche, no centro de São Paulo.
Porém, na saída de uma curva acentuada à direita, o motorista avistou um buraco fundo no asfalto. Para evitar a forte batida do pneu dianteiro esquerdo, forçou um pouco mais a esterçada para a direita, fazendo a carroceria dar um rápido abano de traseira para a esquerda. Nesse momento, a porta do toalete abriu-se, como uma rolha de champanhe na noite de révéillon e o cidadão passou voando de frente para mim, indo aterrissar no assento da janela, na fila em frente.
Detalhe: suas calças e cueca estavam emboladas como algemas em seus tornozelos, a mão esquerda remava no ar à sua frente e a direita trazia um pedaço comprido de papel higiênico, esticado no ar como uma faixa daquelas que pequenas aeronaves passam exibindo com publicidade pelas praias.
Sorte que não havia ninguém sentado ali. Azar do motorista, que teve de parar num posto em São José dos Campos para limpar o veludo do assento com água raz e depois perfumá-lo com desinfetante e um spray desodorizante.

MAIS PERDIDO QUE CEGO EM TIROTEIO
Era minha primeira viagem como guia titular, em dezembro de mil novecentos e oitenta e seis. Eu havia concluído o curso de formação teórica na empresa, depois realizara uma viagem de estágio pelo Circuito das Três Fronteiras, acompanhando um guia titular. Era uma viagem rodoviária de uma semana, que saía do Rio, passava por São Paulo e dormia as duas primeiras noites em Curitiba, quando descíamos a Serra do Mar num passeio pitoresco de trem até Morretes. Depois visitávamos os arenitos de Vila Velha, almoçávamos em Guarapuava, terra da maçã e da cevada e íamos dormir em Cascavel, antes de prosseguir para Foz do Iguaçu, onde dormíamos três noites.
Em Foz, visitávamos as magníficas cataratas do Iguaçu, a usina hidrelétrica de Itaipu, passávamos algumas horas de compras em Ciudad del Este, que na época ainda se chamava Puerto Presidente Strossner, com visita ao cassino à noite e uma manhã no lado argentino, com visita ao salto da Garganta do Diabo e compras na pequena cidade de Iguazu. No regresso, almoçávamos em Maringá e tínhamos uma noite em Londrina, a bela e moderna capital do rico norte do Paraná, antes de passarmos por São Paulo e chegar ao Rio à noite.
Eu tinha passado por Curitiba quatorze anos antes, durante a madrugada e de ônibus, quando me mudei para o Rio de Janeiro. Um ano depois, fizera o mesmo percurso duas vezes, indo a Porto Alegre e retornando ao Rio, também de ônibus e as duas vezes de madrugada. Em janeiro de mil novecentos e setenta e oito, viera com a família ao sul de carro, e pude conhecer um pouco de Curitiba, onde pernoitamos na descida. Depois disso, só a viagem de estágio, mas cometi o erro de não me preocupar em marcar os caminhos, pois os motoristas da empresa eram todos muito experientes e conheciam a capital paranaense muito bem.
Só que eu não contava com o fato de que, para a alta temporada de verão, a empresa contratava vários ônibus de outras transportadoras turísticas, para suprir a enorme demanda. E o motorista que me levou, em minha viagem de estreia, "já fazia muitos anos que nunca tinha estado em Curitiba antes". Nossa estada lá foi cômica, para não dizer terrível. Éramos dois cegos, guiando quarenta e quatro perdidos, mas não podíamos confessar ao grupo nossa condição de pouca experiência, era preciso disfarçar. Nos dois dias na cidade, perdi a conta de quantas vezes nos perdemos.
Lembro-me que na volta de um jantar festivo em Santa Felicidade, tentávamos em vão chegar à praça Santos Andrade, aquela do Teatro Guaíra e da Universidade, bem no centro, onde ficava nosso hotel. Havia um casal de Recife a bordo, nas primeiras duas filas de poltronas, com duas filhas encantadoras, uma de uns oito, e a outra dez anos de idade. Eu ia ao lado do motorista, tentando achar alguma coisa familiar no percurso, virávamos à esquerda, depois à direita e nada. Lá pelas tantas, uma das meninas exclamou em voz alta, num indefectível sotaque “pérrnambucano”:
- “Painho! O Róberto ‘tá abéstado!”
E não restou outra coisa ao grupo todo, senão soltar uma enorme gargalhada em uníssono.
Na manhã seguinte, eu precisava lavar minha honra e recuperar a confiança do grupo. Ainda no apartamento, bem cedo, comuniquei ao motorista minha ideia. Enquanto eu encerrava a conta do hotel e conferia as bagagens, ele iria ao ponto de táxis da esquina e trataria com um dos motoristas para nos guiar até a entrada da rodovia. Disse-lhe para pedir ao taxista que avaliasse o serviço, para que ele lhe pagasse adiantado, assim ficaria tudo bem disfarçado. Dei-lhe algum dinheiro e fui cuidar de meus afazeres, mais tranquilo que água de poço, mais feliz que pinto no lixo.
Tudo pronto, bagagens conferidas e guardadas, o grupo no ônibus, vi o taxi plantado à frente, tudo bem. Respirei aliviado e com visível alegria proferi um convicto e convincente bom dia ao microfone. Pedi ao motorista que oferecesse aos paxes os bombons de uma cesta que eu já havia preparado previamente, depois partimos. Eu estava com todo o gás, o ar assustado e preocupado dos últimos dois dias desaparecera por completo, o restante do percurso era fácil, não teríamos mais problemas.
Tratei de distrair ao máximo o grupo, falando sobre as atrações do dia, esperava que os incidentes dos dias anteriores estivessem esquecidos por todos. Meia hora depois, estranhei o fato de estarmos rodando por uma moderna rodovia de duas pistas, aquilo definitivamente não tinha registros em minha memória. Ainda titubeei um pouco, tentando acordar de uma espécie de pesadelo que de repente se implantara em minha mente, soltei mais algumas palavras meio desconexas, pedi licença e voltei-me para olhar a rodovia de frente e perguntar ao motorista o que estava acontecendo. Abri a boca, mas não para pronunciar a pergunta, bem à nossa frente, sobre a rodovia, um pórtico de aço ostentava uma enorme placa verde, onde os dizeres em branco “PARANAGUÁ - 65 KM” fizeram meus olhos arderem e a cabeça rodar, o mundo desabou.
Mais tarde, o motorista contou-me que pedira ao taxista para nos deixar na BR 277, só que não especificara a direção. Essa rodovia, que liga o porto de Paranaguá a Foz do Iguaçu e daí a Assunção do Paraguai, era interrompida, na época, pela cidade inteira de Curitiba, não tendo ligação de leste para oeste. Fora um presente do Presidente Jucelino Kubitchek ao país vizinho, possibilitando um caminho livre para o Oceano Atlântico, sonho de Solano Lopez que Dom Pedro II impedira, ocasionando a Guerra do Paraguai.
Chegamos para o almoço em Guarapuava às três e meia da tarde, havia no restaurante um recado do supervisor de operações no Rio para que entrasse em contato tão logo chegasse. Imaginei minha carreira encerrada ali, nem bem começada. O vexame era demais. Confessei a sucessão de incidentes ao chefe pelo telefone, tive sorte, ele me apoiou.
O resto da viagem foi um sucesso, o grupo voltou feliz, deixando elogios em seus opinários. Óbvio que perceberam que era minha primeira viagem, mas ficaram satisfeitos, aquilo me serviu de escola, pois não foi a última vez que guiei um grupo por cidades que não conhecia. Só que das outras vezes fui mais cuidadoso e ninguém nunca percebeu que o guia estava cego.

TEJE PRESO! I
Foi numa de minhas primeiras viagens, era o Circuito das Três Fronteiras, janeiro de mil novecentos e oitenta e sete. Havia muitos nordestinos no grupo, o que sempre me fascinou por adorar o nordeste e os amigos que tenho em Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió e Salvador, terra onde mais tarde vivi por dez anos. E era de Salvador um vereador, viajando acompanhado por um amigo.
Pessoa extremamente simpática e comunicativa, não sei se por ser baiano ou por ser político, talvez os dois, conquistou o grupo todo com suas brincadeiras e gentilezas. As crianças o adoravam e ele as cumulava de balas e pirulitos todos os dias. O verão possibilita às excursões terem muitas crianças a bordo e já estávamos a duas semanas do Carnaval.
A viagem corria às mil maravilhas, São Pedro estava generoso, só tínhamos nos molhado mesmo foi com as águas das cataratas, o que, segundo a crença popular, rejuvenesce. Tínhamos até feito uma oração ecumênica no mirante sob o salto Floriano, o grupo estava unido e feliz.
Saímos para a Argentina em outra bela e quente manhã ensolarada; a visita à Garganta do Diabo foi um sucesso, todos estavam impressionados. Uma mulher do sertão do Ceará chorava emocionada na volta ao ônibus, perguntei a razão do pranto, ela respondeu que nunca tinha visto tanta água doce antes. Era compreensível.
Dali, seguimos para a cidade de Iguazu, onde nossos turistas gostavam de adquirir cosméticos argentinos, artesanato em couro, azeitonas, salaminho e alho roxo. Não havia nenhum impedimento para trazer quantidades comedidas destes produtos, de qualidade incontestável e preços razoáveis. Mas, de qualquer forma, sempre havia uma pequena inspeção de rotina na chegada à Alfândega brasileira. Às vezes apenas pediam para abrir os porta-malas e davam uma espiadela no interior do ônibus, com os excursionistas a bordo. Naquele posto da Receita, eu ainda não tinha visto uma inspeção mais rigorosa que isso.
Estávamos com o horário apertado para o almoço numa churrascaria de Foz, mas eu não me preocupava, pois o posto estava vazio à nossa chegada e parecia certo que seríamos liberados logo. O motorista encostou o carro e abriu a porta. O fiscal, com ar grave, chegou ao degrau e solicitou que desembarcassem todos, que abríssemos os porta-malas para que cada um apanhasse seus pertences e formassem fila única para inspeção.
Estranhei a atitude do fiscal, mas minha preocupação maior era com o horário do almoço, estava certo de que ninguém ali tivesse cometido qualquer exagero. Eu mesmo os tinha ajudado a embarcar com suas sacolas de compras, vira também que poucas bolsas tinham sido deixadas nos porta-malas. Orientei os paxes e tomei posição em pé ao lado da mesinha, à frente da qual dois fiscais estavam sentados checando os documentos de cada pessoa, conferindo-os com uma listagem de computador e dando uma olhada rápida nas compras de cada um, liberando-os imediatamente para reembarque.
Havia dois agentes da Polícia Federal parados, em pé, observando a cena a uns dois metros de nós. Eu sabia que eram policiais por seus coletes negros onde se lia o nome da instituição, além do fato de portarem armas em coldres junto ao peito. Não dei mais importância à presença deles do que notá-los e prossegui no meu trabalho de quebra-gelo, descontraindo os excursionistas e os fiscais, brincando com uns e outros por julgar tratar-se de uma operação de rotina, em que tivéssemos caído aleatoriamente. Só lastimava o tempo que nos estava custando.
Depois de mais de metade do grupo já embarcado, é que notei que o vereador era o último da fila, ele vinha com duas daquelas bolsas características da região, retangulares, em malha de nylon listada de azul e branco, fechadas com zíper no topo e com alças reforçadas. Como ele era sempre muito alegre e brincalhão e se aproximasse extremamente sério, com um ar preocupado, até nervoso, tratei de brincar com ele, referindo-me às bolsas:
- "Trazendo muita muamba aí, hem mestre!"
Aí percebi o quanto ele estava transtornado, não sorriu com minha brincadeira, pelo contrário, cada vez mais deixou transparecer seu estado de nervos. Já estava chegando a vez dele e eu sentia um alívio por estarmos quase sendo liberados sem mais retardos.
Um dos fiscais tomou a identidade do último turista da fila para conferir, enquanto o outro pediu para que ele colocasse as duas bolsas sobre a mesa e as abrisse. Tremendo muito, o que já me chamara a atenção, ele correu os zíperes e retraiu-se. O fiscal abriu a boca da primeira bolsa, lá dentro havia uma grande caixa de papel cartão azul brilhante, que ocupava quase todo o interior da mesma. O homem olhou, levantou os olhos para tentar encontrar os do vereador e fez o mesmo com a segunda bolsa, onde o conteúdo era igual ao da primeira. As caixas se assemelhavam àquelas que vêm com panetones na época do Natal e eram as típicas embalagens dos saborosos biscoitos amanteigados argentinos.
O fiscal tornou a levantar os olhos sem encontrar os do meu passageiro, mas assim mesmo perguntou:
- “O que é isso?”
- “Biscoitos amanteigados.” Foi a resposta vacilante.
- “Vou abri-las!”
Olhei o rosto do vereador, que nasceu mulato, vendo que estava mais branco que o Michael Jackson. O fiscal meteu a mão numa das caixas e a destampou de um único rasgão. Meu coração estava na boca e os dois olhos na caixa. Tudo o que se pôde ver, era que a caixa estava mesmo cheia até a boca com biscoitos amanteigados. Senti primeiro um imenso alívio e logo raiva da atitude brutal do fiscal, por ter destruído a caixa que provavelmente seria um presente para uma possível saudosa mamãezinha, no regresso a Salvador.
Mas o baiano continuava tão tenso, ou mais ainda do que antes, enquanto o fiscal o encarava. Em seguida, o homem enfiou a mão direita na caixa, afastando os biscoitos para os lados. Minha ira cresceu, eu já estava a ponto de tomar uma atitude, quando vi a mão do homem voltando com um embrulho comprido feito em papel de jornal. Ele o abriu e lá estavam dois frascos de lança-perfume.
À esta altura, notei que os dois policiais já estavam por trás do vereador, um de cada lado. O fiscal voltou a colocar a mão na caixa, retirando outro embrulho, outro e mais outro, eram ao todo vinte e quatro frascos nas duas caixas. Os policiais o levaram preso, eu indaguei para onde, a fim de avisar a empresa e a família. Eles disseram que iam para a delegacia da Polícia Federal de Foz.
Outros agentes entraram no ônibus e fizeram uma inspeção delicada, nada mais encontrando e nos liberando. Levei o grupo para o almoço, já bem atrasado, depois deixei-os no hotel para a tarde livre e fui à delegacia. Ele estava comodamente sentado no saguão, aguardando ser chamado para depor, a poucos metros da porta da rua, sem ninguém que o vigiasse. Pediu-me que deixasse sua bagagem com o colega de viagem e que este lhe trouxesse uma muda de roupas. Pedi para que ele assinasse um documento em que se desligava da excursão e voltei ao hotel.
Seguimos viagem na outra manhã, o grupo estava abalado, o pior eram as crianças. No caminho, tratei de fazer com que tentassem esquecer, mantendo-os o mais ocupados que pude. À noite, realizamos a festa de encerramento do passeio numa choperia em frente ao hotel de Londrina, tudo estava em paz quando fomos dormir. Mas no café da manhã, quem eu vejo vindo ao meu encontro? O próprio!
Disse que tinha sido liberado e que queria prosseguir com o grupo. Eu sabia que tráfico internacional de entorpecentes é um crime inafiançável, por isso não acreditei nesta liberação, lembrei da maneira frouxa como ele estava sendo mantido na delegacia e imaginei que estivesse foragido. De qualquer forma, não lhe dei consentimento para reintegrar-se. Alguns outros paxes se acercaram, uns mesmo querendo que ele fosse reintegrado ao grupo, chegando a esboçar um abaixo-assinado, que não me intimidou.
Horas depois, em nosso desembarque no largo do Arouche em São Paulo, ele nos esperava com outros dois homens num opala preto com chapa branca da Bahia. Dirigiu-se educadamente a mim pedindo sua bagagem, despediu-se e sumiu. Uma semana depois, quando cheguei com outro grupo a Foz, o guia local me contou que a Polícia Federal tinha recapturado o fujão em São Paulo e o trazido de volta.

TEJE PRESO II
Aquele verão na Flórida estava muito quente. A viagem seria por toda a costa leste americana, de Miami a Nova York e o grupo era por demais animado. Já tínhamos visitado Key West, extremo sul dos Estados Unidos continentais, ilhota debruçada sobre o mar do Caribe, onde Ernest Hemingway escreveu muito de sua divina obra, a multicultural Miami e a colorida Miami Beach. Uma excursionista carioca tinha contado para mim, ainda em Miami, que os meus conterrâneos estavam fazendo a festa em todas as lojas por onde passavam, o que já despertara a atenção do restante do grupo. Ela se referia a dois casais gaúchos que faziam parte do grupo e que viajavam juntos. Era um grande empresário do ramo imobiliário no Rio Grande do Sul com a esposa, levando juntos seu advogado e a esposa deste. A festa a que se referiu era certamente furto em lojas.
Naquela tarde, a caminho de Orlando, visitaríamos o centro espacial John Fitzgerald Kennedy, da NASA, em cabo Canaveral. Quando saímos do fantástico almoço de lagostas, na cidadezinha de Melbourne, comecei a me preocupar com o que me dissera a excursionista carioca. É que, ao final da visita ao centro espacial, era praxe dar uns vinte minutos aos paxes para compra de souvenires na loja oficial do parque e eu sabia muito bem que esta era cheia de câmeras ocultas de supervisão, pouco comuns àquela época, ano de mil novecentos e noventa. Se os cleptomaníacos (rico ladrão a gente chama assim) tentassem levar suas "lembrancinhas", certamente seria flagrados e presos, o que me causaria um transtorno impensável. Mas, como evitar? A ideia que me ocorreu foi de incluir, ainda no ônibus, antes da chegada ao parque, um trecho adicional de advertência velada a meu discurso de recomendações habitual. Assim, saiu mais ou menos isso:
- "... e, no final do passeio guiado que farei com vocês pelo centro de visitação e pátio de foguetes, onde estão as réplicas em tamanho real de cada foguete e ônibus espaciais, darei um tempo de vinte minutos para toaletes e compra de souvenires na loja da NASA. Ah, por falar nisso, esta loja é ultra-moderna e dispõe de um sofisticado sistema de câmeras ocultas para flagrar "shop lifters", como se diz em Inglês ladrões de lojas, para que a garotada que costuma vir para curtir a Disney não se empolgue e cometa furtos na loja deles."
Estou certo de que minha excursionista carioca sabia de minhas intenções ao dizer isso, mas julguei que assim eu os teria alertado com sutileza para que não tentassem praticar seu delito ali. De qualquer forma, como o seguro morreu de velho, decidi policiá-los pessoalmente. A loja era toda guarnecida interiormente por espelhos a quarenta e cinco graus ao longo de todas as linhas de encontro de paredes com o teto. Por trás deste vidro espelhado se escondiam as câmeras e, além delas, os guardas de segurança podiam de qualquer ponto da loja acompanhar qualquer pessoa em seu interior através daqueles espelhos. Sendo assim, me posicionei encostado ao um guarda-corpo bem no centro do grande salão, de onde podia acompanhar cada passo do ladino grupo sem que eles percebessem. A loja estava cheia de turistas e eu não os perdia de vista. Vi quando o empresário, mais seu advogado e a esposa deste, armaram um biombo vivo para que sua esposa apanhasse objetos numa gôndola e os despejasse numa grande bolsa que trazia pendurada no braço esquerdo.
Fui rápido, mas não tanto quanto a zelosa equipe de segurança interna da loja. Quando cheguei a eles, um guarda já a conduzia pelo mesmo cotovelo esquerdo para a direção oposta, dizendo coisas que ela naturalmente não podia entender. Interceptei o guarda e me apresentei como guia da excursão à qual pertenciam aquelas pessoas, que não falavam Inglês. Ele me disse que ela fora flagrada furtando e que a polícia seria notificada para vir levá-la presa. Eu fiz cara de mau e com voz firme ordenei:
- "Pois eu exijo que você nos conduza a uma sala privada e chame seu superior, antes de chamar a polícia!"
O guarda me olhou incrédulo por um instante, mas percebendo minha firmeza, anuiu com um meneio de cabeça e disse:
- "OK senhor, assim será!"
Desviou o caminho, sem soltar o braço que carregava a bolsa recheada, nem distrair-se dele e acrescentou:
- "Siga-me!"
Fiz um sinal com a mão aos acompanhantes dela e disse que esperassem ali. Na sala fechada, o guarda sacou do rádio e fez contato com seu supervisor, que não demorou a aparecer e pedir ao subordinado que fizesse seu relato. Eu esperei firme até que ele terminasse, depois o supervisor da segurança voltou-se para mim e perguntou:
- "E o senhor, o que tem a dizer?"
Durante todo o tempo transcorrido desde que o guarda a detivera, minha cabeça tinha trabalhado a mil e eu tinha um discurso de defesa preparado, que foi fluindo com firmeza, pois eu sabia que se titubeasse perderia toda a razão e credibilidade. Eu tinha recordado que, anos antes, em Porto Alegre, tinha havido uma grande confusão pela cidade quando um senhor de cor negra tinha sido humilhado e maltratado pelos seguranças das Lojas Americanas por ter sido flagrado dentro da loja com um tubo de pasta de dentes num dos bolsos. Lembro que o advogado que o representou mais tarde contra a loja e vencera a causa, tinha justamente argumentado que a loja não poderia ter pressuposto que ele iria furtar o creme dental antes que ele tivesse tentado sair da loja sem pagar por ele. Comecei:
- "Senhores, em meu país, é comum que em lojas que possuam linhas de check out como esta daqui, as pessoas guardem as mercadorias que apanharem da forma que bem lhes convier até chegarem aos caixas, quando entregam tudo ao funcionário para pagar pelas compras. Seu funcionário interceptou minha cliente dentro da loja, antes dos caixas. Sendo assim, não pode pressupor que ela estivesse por furtar os objetos que tem na bolsa. Estou certo de que, se este mal entendido for imediatamente desfeito, ela e seu marido não optarão por processá-los pelos danos morais a que os estão sujeitando."
Percebi que, ao proferir estas últimas palavras, o chefe da segurança engoliu em seco, pelo movimento forte de seu pomo-de-adão. Ele não esperou nem mais um segundo, voltou-se para o guarda e disse:
- "Acompanhe discretamente de perto esta senhora até o check out e observe para que ela pague pelas mercadorias que carrega consigo!" E voltando-se para mim e para a mulher, acrescentou: "Nossas desculpas, senhor, senhora."
No caixa, já com o marido ao lado e sob o olhar firme do guarda, a mulher retirou da bolsa alguns souvenires, mostrou o interior vazio da mesma à funcionária e o marido pagou pelo total mostrado no visor. Claro que o grupo todo percebera e entendera o que havia acontecido, mas não houve comentários abertos a respeito. O que posso acrescentar é que nem a mulher detida pelo guarda, nem seu marido, nem seus acompanhantes, foram capazes de me dirigir qualquer palavra de agradecimento, em momento algum até o fim da viagem. Fizeram de conta que meu discurso de defesa tinha sido a expressão da mais pura verdade e que eu não tinha feito absolutamente nada além de minha obrigação. Nem gorjeta me deram no final do tour.
TEJE PRESO! III
Eu levava um grupo pelo Canadá, era uma viagem que começava em Toronto, com visita às cataratas do Niagara, depois conhecia a belíssima capital canadense, Ottawa, prosseguia direto até Québèc, depois Montréal. Da bela metrópole bilíngue, que por décadas foi conhecida como "The Sin City"[2], voávamos para Edmonton, conhecíamos as Montanhas Rochosas canadenses, depois Calgary, íamos para Vancouver, visitávamos Victoria e voávamos de volta para o leste, concluindo o tour com três noites em Nova York.
O ano era mil novecentos e noventa e nove, final de primavera no caminho para Québèc, quando pouco depois de passar por Montréal, pedi ao motorista que fizesse uma parada técnica de noventa minutos junto a um mall[3] em Saint Hyacinthe para almoço livre. Ali havia tudo o que turista brasileiro gosta: muitas opções de alimentação e muitas lojas para visitar. Ainda no ônibus, dei todas as dicas sobre as facilidades que encontrariam no local. Mostrei um Pizza Hut em frente ao estacionamento, onde havia um excelente buffet de almoço, dizendo ao grupo que ali eu estaria, comendo, caso precisassem de apoio e ajustei o horário de reapresentação para partida.
Alguns dos paxes me acompanharam ao Pizza Hut, outros se foram direto para o mall. Como eu dispunha de muito tempo, comi com calma, vi meus "filhos" terminarem rápido e se dirigirem ao mall e fiquei por ali lendo. Mas não terminei a terceira página do livro, pois um jovem casal entrou afoito e vieram ofegantes falar comigo:
- "Roberto, o seu Antônio se meteu numa encrenca no supermercado do mall, foi pego pelos seguranças que parecem estar dizendo que ele estava roubando. Você tem que vir acudir!"
Saí às pressas e, pelo caminho, encontrei outros excursionistas que igualmente vinham me chamar pelo mesmo motivo, os últimos contavam que o tal seu Antônio já tinha sido levado pela polícia.
Quando cheguei à entrada do supermercado, vi o carro do xerife estacionado em frente e concluí que a coisa era mesmo grave. Entrei rápido e localizei o xerife e sua linda ajudante, uma policial franco-canadense fardada, que quase me fez esquecer o que me levara ali. Os dois conversavam com o que certamente seria o gerente do supermercado, um sujeito alto, metido numa impecável camisa branca com gravata e um crachá no peito que confirmava minha suposição, onde se lia: "MANAGER". Cheguei neles e me apresentei como guia do grupo de turistas brasileiros do qual fazia parte o cidadão detido havia pouco. O xerife, muito bem educado ostentando a famosa estrela sobre o peito do uniforme engomadíssimo, pediu ao gerente que me reportasse a ocorrência.
Com tranquilidade, o gerente contou que meu excursionista circulava pela loja em atitude que os seguranças julgaram suspeita, até que pegou, na seção de bagagens, uma destas maletas de comissário de bordo, com alça retrátil e rodízios. Ele estava sendo monitorado pelas câmeras de segurança enquanto prosseguiu apanhando outras mercadorias pelas gôndolas e colocando-as dentro da maleta, que fechava a cada vez. Contou que, ao passar em frente a uma passagem de comunicação do supermercado com o restante do mall, onde não havia caixas de check out, pois ficavam todas na entrada principal da loja para a rua, ele naturalmente tomou o caminho de saída da loja, adentrando a área comum do centro comercial. Disse que neste momento dois seguranças o detiveram, que a polícia foi acionada, veio rapidamente e que os policiais haviam conduzido o suspeito preso para a central de polícia da cidade.
Enquanto o jovem executivo narrava, me veio à cabeça um acontecimento semelhante que eu vivera anos antes, na Flórida, de forma que quando ele concluiu seu relato, eu já tinha pronto o discurso de advogado de defesa na ponta da língua. Sorri levemente, para dar ares de naturalidade ao que iria dizer e iniciei, no melhor francês que pude engendrar:
Bem, os senhores sabem que trago comigo um grupo de turistas brasileiros, são todos pessoas de bem, de excelente nível social, mas que dificilmente sabem falar mais que meia dúzia de palavras em inglês, muito menos em francês. Eu parei nosso ônibus aqui em frente ao mall para que eles tivessem noventa minutos livres para almoçar e visitar as lojas, antes de prosseguirmos viagem para Québèc, onde estaremos hospedados por dois dias no Chateau Fronténac[4]. Disse que estava seguro de que, se havia alguém que deveria ser preso naquele momento, este alguém seria eu, pois teria sido minha falha não ter explicado aos meus passageiros previamente que o supermercado e o restante do mall eram coisas à parte e que, certamente, aquele digníssimo senhor julgara tratar-se de uma grande loja de departamentos e que provavelmente tivera a ideia de percorrer outros departamentos antes de apresentar-se ao check out para pagar pelas compras.
Terminado meu discurso, o xerife voltou-se para o gerente, enquanto eu aproveitava para avaliar mais de perto a maravilha que era aquela policial, de nome Sophie, segundo dizia a plaqueta sobre o volume de seus seios. E bota volume naquilo! Ele perguntou ao jovem se minha argumentação o convencera, ou se desejava registrar a ocorrência de tentativa de furto qualificada. O rapaz abanou a cabeça de leve, sorriu e disse que não, que ele, em nome do supermercado, apresentava os pedidos de desculpas a meu excursionista e que estaria tudo bem para si.
O xerife então me convidou a acompanhá-los ao distrito policial para a liberação do seu Antônio, um paulistano de meia idade que viajava só, sem nenhum acompanhante no grupo. Eu anuí e os segui até o carro policial, Sophie, sorrindo maravilhosamente, me informou que teria que viajar no assento traseiro, onde normalmente seguiam os presos. Eu estava tão fascinado por ela e por minha gloriosa e rabulística vitória, que respondi sorrindo que por mim estaria tudo bem. De fato, o assento traseiro era destinado a prisioneiros, pois as portas tinham grades de aço por dentro dos vidros e entre o espaço dele e o dos assentos dianteiros, bem como uma longarina de aço à frente de toda a sua extensão, para fixação de algemas. Mas era um assento confortável e imerso no mesmo ar condicionado dos passageiros da frente.
Quando o xerife deu a partida e passou em frente ao grupo de brasileiros que assistia à cena, caiu minha ficha de que atravessaria a cidade parecendo um preso e me arrependi por nunca ter gostado de usar óculos escuros, para esconder o rosto, a cada sinal de tráfego que fechava no caminho, dos ocupantes dos carros vizinhos. Mas Sophie parecia muito alegre e puxou assunto comigo, dizendo que tinha vontade de conhecer o Brasil, me fazendo perguntas sobre nosso país. Juro que só não lhe estendi um cartão de visitas, me oferecendo para ser seu anfitrião, porque temi colocar por terra a missão da qual estava oficialmente imbuído, caso a moça estivesse apenas sendo simpática.
Na central de polícia, tive que preencher um imenso formulário e um relatório detalhado em francês, repetindo meu discurso no supermercado, contando com a ajuda da gentilíssima policial, para, depois de assiná-lo e esperar uns quinze minutos, ver a porta da carceragem se abrir e Sophie sair trazendo seu Antônio e o entregando literalmente a mim. Eu agradeci e perguntei se poderia usar um telefone para chamar um táxi que nos levasse de volta ao ônibus. Ela derramou sobre mim mais uma vez o mel daquele maravilhoso sorriso e disse em francês de veludo:
- "Non, non, senhorr Soarres, nós os trouxemos aqui, nós os levarremos de volta. O xerrife pediu que fizessem a finesse de esperrá-lo um parr de minites, parra que ele se desembarrace e venha."
Foi assim, com aquela bela e jovem policial franco-canadense, metida naquele impecável uniforme que, por incrível que pareça não lhe roubava nada da graça, me abrindo a porta para descer em frente ao ônibus, sob os aplausos de todos os demais passageiros, que este causo se encerrou. Só para completar, nunca mais soube notícias de minha musa quebequense e seu Antônio, ao final da viagem, quando os paxes costumam dar gordas gorjetas e presentes ao guia, deu-me apenas uma camiseta preta, com a insígnia e as palavras no peito: "POLICE DE QUÉBÈC".
TEJE PRESO! IV
Philadelphia é uma belíssima e pujante metrópole do estado da Pennsylvania. Foi a capital dos Estados Unidos à época da declaração da independência americana. Nas dependências do antigo e hoje preservado prédio do parlamento colonial, homens como George Washington e Thomas Jefferson, entre outros, discutiram, redigiram e assinaram, em quatro de julho de mil setecentos e setenta e seis, o documento que levou americanos e ingleses à Guerra da Revolução, que consolidou a independência da confederação americana.
O prédio do parlamento contava com um sino, instalado numa torre, que servia para anunciar acontecimentos, desde as sessões parlamentares a falecimentos. Este sino soou em grande alvoroço para celebrar a assinatura da Declaração da Independência, mas acabou rachando e teve que ser retirado do campanário para ser consertado. Foi quando se descobriu que na sua face interna havia uma inscrição gravada no bronze, que dizia: "Proclamem a Liberdade, por toda a Terra e para todos os seus Cidadãos". A partir de então, o sino foi batizado como "O Sino da Liberdade" e hoje está em exposição contínua num salão envidraçado construído na praça em frente ao antigo parlamento, onde milhares de pessoas, vindas de todos os cantos do país e do mundo vêm para formar uma fila constante a fim de não só vê-lo de bem perto, como também passar a mão neste importante símbolo da liberdade americana.
Esta praça, muito ampla e arborizada, está sempre repleta de pombos e passarinhos. Após fazer um completo tour guiado com meus passageiros pelas dependências do antigo parlamento, eu costumava deixá-los livres para visitarem o sino, fotografarem o local, ou simplesmente passear pelo farto comércio que circunda a praça. Dava-lhes uma hora para isso, antes de prosseguirmos viagem rumo a Nova York.
Como era hábito fazer o serviço de bordo regular durante as viagens, como naquela manhã, depois de sair cedo de Washington para visitar Baltimore, onde almoçávamos antes de chegar a Philadelphia, havia alguma quantidade de sobras de pacotes abertos de biscoitos no ônibus. Estávamos em pleno verão de mil novecentos e noventa e um e eu decidira esperar pelos paxes sentado à sombra das árvores, num dos bancos da praça, perto de onde o ônibus estava estacionado.
Vendo tantas aves por todos os lados, lembrei dos biscoitos e fui apanhá-los no ônibus, onde o motorista cochilava. Tornei a ocupar o banco sob as árvores e logo me vi cercado por dezenas, talvez centenas de pombos e pardais famintos que disputavam cada migalha que eu, feliz da vida e completamente desligado do resto do mundo ao meu redor, distribuía.
Estava assim, encantado e no mundo da lua, quando uma voz alta, firme, dura e fria me trouxe de volta à realidade:
- "Sir!"[5]
Olhei imediatamente por sobre meu ombro esquerdo e lá estava o famoso e engomadíssimo uniforme azul marinho, enfeitado pelas insígnias douradas e vestido por um carrancudo policial. Na cintura, o imenso cacetete negro, um porta algemas e o coldre recheado, além de um estojo, também negro, de onde saía um fio espiralado que subia até um microfone preso sobre o lado esquerdo do peito, quase no ombro. Sobre a cabeça um quepe de pontas, azul marinho, de aba preta e ostentando uma grande insígnia dourada. A seguir vi o outro, estavam em dupla e me miravam como se seu próximo ato fosse me levar preso.
O mesmo policial, que me chamara a atenção, voltou a falar:
- "Você tem ciência de que está infringindo a lei?"
Eu estremeci, uma corrente elétrica congelante circulou por minhas artérias, estava claro que aqueles dois oficiais não estavam brincando, embora não me passasse pela cabeça o motivo de sua abordagem. Depois de algum tempo, consegui me recompor e, tremendo feito vara verde, respondi:
- "Desculpe, oficial, mas não faço ideia da razão de sua abordagem." – e completei: - "Não, senhor, não estou ciente de estar cometendo algum crime."
O outro policial, até então calado, deu mostras de se impacientar e interferiu com certa rispidez:
- "Quem é você e de onde vem?"
- "Sou o líder de um grupo de turistas que está visitando o local, eu os aguardo aqui. Nosso ônibus é aquele e somos todos do Brasil."
Em todas as minhas andanças pelo mundo, pude constatar que, dizer que se é do Brasil, funciona como uma espécie de bálsamo nos ânimos de nossos interlocutores, seja qual for o tipo de situação. Não foi diferente ali, naquele momento, embora nos Estados Unidos esta regra nem sempre tenha funcionado. Os americanos têm o hábito de não tender a quebrar regras, especialmente quando são os fiscais delas, como no caso dos policiais que me abordavam. O primeiro policial pareceu relaxar um pouco em sua atitude hostil e falou com atitude mais branda:
- "Senhor, os pombos e pássaros em geral, defecam muito, o que atrai os ratos, que se tornam uma praga incontrolável na cidade. Por esta razão, há aqui uma lei que proíbe as pessoas de alimentar os pássaros, com o intuito de não estimulá-los a se reunir, facilitando o controle da peste dos ratos. O senhor está infringindo esta lei e nós gostaríamos de saber se o está fazendo de forma consciente."
Por mais ridícula que a lei tenha me parecido, era lei e eu precisava respeitá-la. Mais aliviado por perceber que não seria preso, respondi:
- "Oficial, eu realmente desconhecia a existência desta lei. Reconheço agora o seu significado e prometo que não vou desrespeitá-la. Peço ainda que me perdoem pela infração involuntária e, com sua licença, vou guardar o restante dos biscoitos no ônibus."
O segundo policial, mais nervoso e ainda de cara fechada, virou-se e saiu caminhando devagar. O primeiro apenas respondeu, antes de também se afastar:
- "Go ahead!"[6]

NĂO ERA O MICROFONE
Primeira manhã em Foz, a cidade que possui uma das maiores concentrações hoteleiras do Brasil, estávamos no excelente Hotel San Martin. Eu dividia um apartamento com o motorista, o que era usual, a menos quando o gerente de algum hotel de pouca lotação fizesse a gentileza de oferecer gratuitamente dois apartamentos para a tripulação.
Nosso apartamento tinha a porta do banheiro faceando a porta de entrada. Antes de dormir, o motorista tinha preparado seu pequeno despertador para bem cedo, pois tinha que levar o ônibus a um posto de serviços, para fazer a limpeza habitual do toalete, lavagem geral e abastecimento de combustível e gelo. Eu havia marcado meu despertar para um pouco mais tarde e adiantado algumas pequenas tarefas contábeis do tour antes de pegar no sono.
Quando a chamada da telefonista me despertou pela manhã, vi que o motorista já havia saído sem que eu tivesse percebido. Meio sonolento ainda, entrei no banheiro fechando a porta e me despi para entrar no boxe do chuveiro, foi quando me dei conta que tinha deixado o nécessaire sobre o aparador do quarto. De um reflexo, dei meia volta.
É mais ou menos comum entre os homens acordar em estado de total ereção, quando a bexiga está cheia. Eu mesmo, gosto de me aliviar no ralo do boxe, com a água quentinha do chuveiro já correndo sobre meu corpo. É quase um ritual matinal.
Então, desta forma e chateado pelo esquecimento, abri rapidamente a porta do banheiro para ir buscar os apetrechos de banho no quarto, mas congelei sob o umbral. A porta do apartamento estava totalmente aberta e havia duas excursionistas paradas logo à minha frente. As duas eram cunhadas, vinham de São Paulo e viajavam com os maridos. Por alguns segundos ninguém se moveu, os olhos das duas, esbugalhados, fixaram-se em meu estado, digamos, interessante. Passado o choque inicial, consegui dizer “bom dia!” com um meneio de cabeça, ao mesmo tempo que dava um passo para trás e fechava a porta do banheiro escutando a resposta das duas em coro.
Fiquei por um instante com o ouvido colado à porta e escutei a voz do motorista que lhes entregava alguma coisa que elas agradeceram, a porta foi fechada e tudo ficou em silêncio. Vestido com a bermuda com que dormira, saí de volta para o quarto já deserto e apanhei o necessaire.
Já estava quase esquecido do incidente, quando encontrei o motorista saindo do salão do café da manhã à minha chegada; ele aproximou-se rindo, contou-me que tinha voltado do posto e dirigia-se direto ao café quando encontrara as duas senhoras, que lhe perguntaram como fazer para obter um kit de costura para algum reparo de urgência. Como ele tivesse um consigo na bagagem, fora com as duas até o apartamento para emprestar-lhes. Disse que ao abrir a porta com cuidado, tendo as duas atrás de si, espiou e viu que eu não estava no quarto, presumindo que eu estivesse no banho. Por isso largara a porta escancarada para não ser mal educado de fechá-la nas caras das passageiras. Rapidamente foi apanhar o kit, e chegou a ver-me recuando quando voltava. O pior, segundo ele, era o que eu encontraria dentro do salão do café. Dizendo isto, afastou-se rindo como chegara. Eu não fazia idéia do que seria, entrei meio titubeante no salão, lá estava quase todo o grupo, as duas mulheres não estavam, mas seus maridos sim.
Você já passou por aquela sensação de que todo mundo sabe alguma coisa embaraçosa a seu respeito, mas ninguém lhe diz? Pois é, era exatamente isso, todos me olhavam de uma maneira esquisita, como se tentassem segurar uma risada.
Estava sentado, terminando de tomar meu desjejum, quando um dos excursionistas, um legítimo gozador carioca, puxou uma cadeira e sentou-se à minha frente. Aparentando divertir-se bastante, contou-me o que estava acontecendo. As duas haviam espalhado para todo o grupo o que haviam visto, só que, a julgar pelo que ele me contou, tinham exagerado um bocado nas, digamos, dimensões. Este mesmo cidadão, tornou-se o líder das gozações comigo dali para a frente. Pude notar uma especial mudança de comportamento nas demais mulheres, as duas protagonistas demonstravam ares de orgulho e algo de superioridade durante as brincadeiras que o grupo fazia comigo.
Estávamos em maio e não havia crianças a bordo, o que os deixava mais à vontade para promover tais brincadeiras picantes. Naquela mesma manhã do incidente, quando já estávamos todos a bordo para nos dirigirmos à usina de Itaipu, eu empunhei o microfone para começar a falar. O carioca levantou-se do fundo do carro, onde estava sentado, e gritou:
- “Deixa eu ver se o que o gaudério ‘tá segurando é o microfone mesmo!”
TANGO DO CRIOULO DOIDO
City tour em Buenos Aires, a europeia capital argentina, cidade magnífica de arquitetura clássica e sotaque portenho. Como é linda e vibrante Buenos Aires! A guia local era uma atração à parte, belíssimo exemplar das “macanudas hermanas de sangre caliente”. Para estontear-nos ainda mais, afortunados turistas tupiniquins, Maria Rita apresentava-se invariavelmente com umas mini-saias que mais pareciam faixas de cintura de gaúcho e blusas preciosamente decotadas. Uma amiga minha, se a visse assim, diria que ela se vestia "para matar.”
Mas a indumentária só a enfeitava; dona de uma personalidade marcante e de um altíssimo grau de cultura, logo desviava e prendia a atenção de todos, ou quase todos, às belezas e detalhes históricos de sua cidade, falando um português perfeito, temperado pelo charme de seu sotaque.
Era verão, a cidade estava florida e verdejante, a manhã de sol era perfeita para nosso passeio. Eu estava sentado numa almofada sobre o braço de abertura da porta dianteira, nos degraus internos do ônibus. Já tínhamos percorrido dois terços do tour, quando rodávamos pela exuberante e larga "rambla" e Maria Rita começou uma frase:
- “Aqui, na avenida San Martin, ...”
Mas foi interrompida por um excursionista, sentado pela quinta fila:
- “Maria Rita! Afinal, quem é este tal de San Martin, que tem tanta coisa com o nome dele nessa cidade?
Antes que a estupefata guia, que já tinha dispensado bem uns dez minutos falando sobre o grande Libertador da América no início do passeio, pudesse responder, saltei de meu lugar e sem microfone respondi em voz alta:
- “O senhor não lembra? Foi o artilheiro argentino da copa de setenta e oito!”
O grupo todo explodiu em gargalhadas, enquanto o pobre cidadão tentava entender o que estava acontecendo.
TEM MARIDO QUE É CEGO!
A viagem era Quatro Bandeiras, um tour circular que sai do Rio, passa por São Paulo e dorme em Curitiba duas noites. De lá, segue para duas noites em Blumenau com visita a Joinville, a maior e mais rica cidade catarinense, no vale do Itajaí. Para o sul, visitas à bela e exuberante Florianópolis, à histórica Laguna, terra de Anita Garibaldi e aos rochedos de Torres, antes de chegar para duas noites em Porto Alegre, com um passeio de dia inteiro por Nova Petrópolis, Gramado e Canela. De Porto Alegre, a viagem segue para duas noites em Montevidéu, com visita à elegante Punta del Este.
Por falar na lindíssima capital uruguaia, espraiada sobre o “mar del Plata”, cabe uma curiosidade sobre seu nome, Montevideo, na língua espanhola. Quando o navegador espanhol Juan Diaz de Solís descobriu o rio da Prata em 1516, foi mapeando a região enquanto o remontava. No local onde mais tarde seria fundada a cidade, ele avistou a sexta colina desde a boca do rio e anotou sobre o mapa: Monte VI (em romanos, 6º), D.E.O. (abreviado do espanhol, Desde Este a Oeste), como era sua notação cartográfica. E aconselhou aquela posição estratégica para a localização de uma possível cidade.
De Montevidéu, seguíamos pelo Complexo Zarate de pontes sobre o delta do rio Paraná para chegar a Buenos Aires, onde tínhamos três noites muito bem aproveitadas. Saindo da capital argentina depois do almoço, visitávamos Rosário (que se parece muito com Porto Alegre) e Santa Fé. Nesta cidade jantávamos, antes de viajar toda a noite pelo pantanal argentino para amanhecer na fronteira paraguaia, perto de Assunção, onde permanecíamos outras duas noites. De volta ao leste, visitávamos Ciudad del Este e ficávamos duas noites em Foz. Depois um pernoite em Londrina e a volta a São Paulo e Rio.
Havia dois motoristas nesta viagem, por ser muito longa e também pelo trecho noturno. Saímos do Rio levando entre os paxes dois casais com média de idades em torno de vinte e oito a trinta anos. Um deles era de São Luís do Maranhão, o outro do Rio. As duas mulheres eram bonitas, a carioca era alta, tinha os cabelos longos, negros e muito lisos, com os olhos verdes; a maranhense um pouco mais baixa, com cabelos loiros ondulados e olhos castanhos claros. Seus maridos eram pessoas muito polidas e simpáticas. Não se conheciam antes da viagem, mas logo se identificaram pelas idades, destoantes do resto do grupo, de bem mais idade. Pareciam velhos amigos desde a saída do Rio, começaram a conversar ainda do lado de fora do ônibus, no embarque em frente ao aeroporto Santos Dumont.
Desde a segunda noite em Curitiba, no jantar festivo em Santa Felicidade, a maranhense colou-se a um dos motoristas e a carioca a mim. Por iniciativa própria, deixaram todo o resto do grupo na mesa grande onde estavam e vieram jantar conosco em nossa mesa a um canto. O outro motorista preferia descansar no hotel à noite e dirigir nas manhãs. Assim, éramos sempre eu e Felipe nos jantares e outras atividades noturnas.
As duas pediram vinho e literalmente “soltaram as frangas” durante o jantar. Eu ia com frequência à mesa do grupo, observar como estavam sendo servidos, via os dois rapazes bem à vontade, tagarelando entre eles, sem sequer levantar os olhos para nossa mesa. Achei que talvez estivesse imaginando coisas, provavelmente elas estavam aborrecidas com as conversas da mesa e preferiram sentar-se conosco, o vinho as tinha liberado um pouco. Os dois fomos deixando a brincadeira rolar, mas esticávamos os olhos disfarçadamente para onde os maridos estavam, todas as vezes que elas ousavam um pouco mais, abraçando-nos, ou apoiando seus corpos contra os nossos.
De qualquer forma, nos revezamos nas chuveiradas antes de dormir. Dali para frente foi todo o tempo assim, elas estavam constantemente conosco, chegava a ser constrangedor, pois se os maridos não percebiam, outros poderiam já estar maliciando. Em trechos rodoviários, os dois maridos sentavam-se juntos, com jornais às mãos, conversando todo o tempo. Quando eu não estava ao microfone, as duas vinham para a frente do ônibus, sentavam-se nos degraus e ficavam de papo conosco.
Na churrascaria em Porto Alegre, insistiram em que dançássemos com elas. Tentamos evitar, mas fomos literalmente arrastados para a pista de danças. Não perdi a cabeça por pouco, Felipe contou-me depois que o mesmo lhe passou. A situação estava muito difícil. Por mais que os instintos animais nos perturbassem, tentávamos todo o tempo em vão afastá-las com educação e tato. Foi assim até a noite festiva numa cantina no bairro de La Boca, Buenos Aires, quando o vinho barato entortou a todos.
Elas estavam em nossa mesa, como sempre, o restaurante todo estava em meio a um baile de carnaval, as pessoas faziam trenzinhos em torno das mesas, nossas duas amigas estavam "cheias de mãos". Vendo os dois rapazes já na maior manguaça, saltitando com os demais pelo salão, não resisti mais e soltei a pergunta que nós os dois tínhamos entalada nas gargantas desde Curitiba, havia uma semana:
- “Vem cá, os maridos de vocês não se importam nem um pouco por vocês passarem o tempo todo conosco?”
As duas se olharam de frente e caíram na risada, depois a carioca respondeu:
- “Por quê? Se nós os convencemos que vocês são homossexuais enrustidos! Que têm um caso e nos confessaram.”
Ficamos os dois sem ação enquanto as duas riam mais; já era tarde e tínhamos que voltar ao hotel, elas continuaram divertindo-se até nos darmos boa noite no saguão e os dois casais tomarem o elevador. Eu e Felipe fomos tomar um café no bar ao lado do Hotel Bauen, estávamos incrédulos e atônitos, queríamos vingança, embora concordássemos que era exatamente isto o que elas esperavam e queriam.
Na viagem noturna, como era um hábito meu, fui sentar-me no degrau superior ao lado do Felipe, levando uma térmica de café, uma garrafa d’água, biscoitos e copos. Sempre fazia isso para apoiar o colega com aquela imensa responsabilidade e achava muito importante, até porque algum passageiro podia precisar de ajuda à noite. O outro motorista dormia no assento do guia, no fundo do ônibus. Na chegada a Assunção, o supervisor local assumia o grupo com uma guia por todo o primeiro dia e eu podia dormir o sono atrasado.
As duas não tardaram a aparecer por lá, a maranhense tomou a almofada e sentou-se sobre o braço de articulação da porta, a carioca sentou-se no degrau abaixo do meu, aninhando as costas e a cabeça no meu peito. O ônibus estava totalmente às escuras, só as pequenas luzinhas guias de piso estavam acesas, o ronco dos passageiros nas primeiras fileiras era uma sinfonia. Elas disseram, ao chegar, que não tinham sono e que tinham decidido nos fazer companhia.
A sós comigo, no banheiro do parador em Clorinda, junto à fronteira, enquanto nos barbeávamos pela manhã, Felipe disse que estava certo de que elas armavam tudo juntas. Em Assunção, tratamos de evitá-las o mais que podíamos, mas todas as nossas tentativas resultavam inúteis e os maridos, sempre desligados.
Na véspera de deixarmos a capital paraguaia, Felipe contou-me no apartamento que a maranhense tinha falado rapidamente com ele no final da tarde no saguão do hotel; ela anunciara que em Foz as duas dariam conta do recado, mas que precisariam de nossa ajuda para a armação. Já não foi preciso muita discussão para concordarmos em apoiá-las em seu intento.
A tarde do último dia em Foz era livre, costumávamos alugar um ônibus local e vender um opcional a Ciudad del Este, para que os paxes fizessem suas compras com mais calma. Praticamente todos os excursionistas sempre adquiriam este programa, saindo às duas da tarde e só regressando por volta das sete e meia. Elas disseram aos prestimosos maridos que preferiam pegar uma piscina, mas ambas tinham muitas encomendas de coisas que eles lhes deviam trazer. Aleguei ao grupo que não poderia ir, por causa de compromissos com a contabilidade atrasada da viagem e para dar apoio ao Felipe nos cuidados com o ônibus, para a viagem do dia seguinte. O outro motorista concordou em acompanhá-los.
Pouco depois da partida do grupo, as duas chegaram vestindo cangas sobre os biquínis e só saíram de nosso apartamento quando já eram quase dezenove horas. Como estávamos em horário de verão, as damas foram esperar seus valetes na piscina. Felipe e eu saímos para buscar o ônibus no posto, lavado e abastecido, chegando de volta ao hotel na mesma hora em que o ônibus contratado para o opcional desembarcava nossos amigos, que para completar nosso álibi, nos viram chegar.
Naquela noite, o outro motorista deve ter tido muito o que pensar quando, de nossas camas, um desejou ao outro em voz alta de falsete:
- “Boa noite biba Felipita!”
- “Boa noite biba Robertinha!”
DE TECLADO NOVO
Estávamos em Porto Alegre, minha cidade natal, com um tour Quatro Bandeiras, era o verão de mil novecentos e oitenta e nove. Havia no grupo um casal de Vitória, Espírito Santo. As idades entre trinta e trinta e cinco, a mulher lindíssima e elegante, lembro-me da relação que fiz com a esposa do então governador de lá, Rita Camata, mulher também muito bonita.
Na noite de chegada, havia um jantar numa grande churrascaria, com show de folclore. O grupo tinha se divertido bastante, comeram, beberam e dançaram fandango no meio da gauchada. Retornamos ao hotel muito cansados, tinha sido um longo dia desde o despertar do grupo às seis e meia da manhã em Blumenau, o dia seguinte seria na serra. Eu estava sozinho num apartamento, os dois motoristas em outro. Não levei muito tempo para apagar por completo.
De repente, aquele telefone tocava muito insistentemente em meu sonho. Assustado, acordei descobrindo que o toque era real. O apartamento estava um breu, eu não sabia em que cidade do mundo estava, que horas seriam, talvez nem mesmo quem eu fosse, muito menos por que aquela campainha insistia tanto. Passados alguns segundos perdido naquele planeta distante, consegui entender que era o telefone que tocava, tateei pela mesa de cabeceira e o achei, erguendo o fone com uma das mãos, enquanto a outra procurava o interruptor.
A voz do outro lado da linha ainda parecia etérea quando o acender da lâmpada feriu-me os olhos, despertando-me de vez. O homem identificou-se, era o capixaba, que gastou bem uns dois minutos escusando-se pela chamada àquela hora, mas ele garantia que se tratava de uma emergência.
Lembrei-me da história do cara que devia uma nota preta a um agiota e o vencimento era no dia seguinte, mas ele não tinha o dinheiro. O pobre endividado não conseguia dormir, nem deixar que a esposa o fizesse, preocupado pela dívida. Lá pelas tantas da madrugada, teve uma brilhante ideia, pegou o telefone e discou para a casa de seu credor. Uma vez atendido, identificou-se e anunciou que não saldaria o compromisso por absoluta falta de dinheiro. Sem aguardar resposta, desejou boa noite e desligou; a seguir, aninhou-se à mulher na cama, dizendo-lhe ao ouvido:
- “Boa noite querida, agora quem não dorme é ele!”
O capixaba, apressado por mim, que o deixava mais à vontade, começou a rodear mais que cusco[7] sonolento. Contou que ele e a esposa estavam adorando a viagem e que haviam se divertido muito na churrascaria na noite passada. Depois de mais alguns rodeios, continuou dizendo que a esposa tinha abusado um pouco no churrasco e no vinho. Outras voltas a mais e disse que ela estivera indisposta, mas aí a história empacou. Passado algum tempo tergiversando mais, sentenciou que desejavam que eu lhes providenciasse passagens de avião para Vitória, para a manhã seguinte.
Aí eu pude falar, percebendo que os dois, do lado de lá da linha, estavam muito confusos. Quis saber o motivo do regresso, pressionando-o o suficiente. O homem rodeou mais um pouco, depois decidiu-se e começou a explicar. Contou que a esposa sofrera um desastre automobilístico havia alguns anos, perdendo todos os dentes superiores frontais, e que usava uma prótese. Intrigou-me o fato de não ter percebido, mas lastimei, principalmente por sua beleza.
Entre mais rodeios, prosseguiu dizendo que ela tinha ido ao vaso sanitário vomitar e que entre tonta e enojada, tinha dado descarga sem perceber que havia cuspido a prótese junto. Por esta razão, queriam regressar imediatamente, mas suplicavam que as razões reais fossem mantidas em sigilo.
Já faziam dezesseis anos que eu deixara Porto Alegre, onde nasci e cresci, para morar no Rio; mas quando o homem falou em prótese e em indisposição por comer e beber demais, voei à sua frente, visualizando exatamente o final da história. No momento em que ele dizia que ela tinha ido ao banheiro, eu já apanhava a lista telefônica na bandeja inferior da mesinha de cabeceira. Ele estava na descarga, e eu já estava na página de “pr...” nas páginas amarelas. Enquanto ele me solicitava discrição, meu dedo indicador direito já apontava o maior e mais chamativo anúncio de protético, onde se lia a informação mais importante: “Laboratório Próprio”. Aí ataquei de improviso:
- “Ora! Mas é só isso? Vocês sabem que eu nasci e cresci aqui; pois eu tenho um grande amigo de infância que é o mais qualificado protético de toda a região sul. Ele possui laboratório próprio, seu consultório é aqui pertinho e abre às nove. Estou certo de que terá o maior prazer em ajudá-los, resolvendo este problema como num passe de mágica. Vocês só perderão o passeio à serra, mas eu posso contar ao grupo que vocês já estiveram lá muitas vezes e que preferiram passar o dia visitando um casal de amigos que mora aqui. O que o senhor acha?"
O homem estava atônito, pediu-me um tempo para dialogar com a esposa, enquanto eu aguardava na linha. Retornou a seguir para perguntar se eu acreditava mesmo que daria certo. Dei-lhe mais segurança, contando que este amigo já tinha sido até premiado. Instantes depois ele concordou e eu ditei nome, endereço e telefone do protético, ensinando o caminho. Na verdade, o consultório ficava a duas quadras do hotel, mas eu nunca tinha sequer ouvido falar sobre tal pessoa. Pela manhã, o pobre homem veio me procurar no salão do café, ainda preocupado em que não desse certo. Assegurei que se isso acontecesse, eu conseguiria as passagens à noite no aeroporto, quando chegasse, injetando-lhe mais confiança.
Eram quase nove da noite quando desembarcamos o grupo na porta do hotel, desejando-lhes boa noite e bom descanso. Depois de todos entrarem, despedi-me do motorista e entrei. No saguão, os dois me esperavam de braços abertos, sorridentes. A mulher tinha um sorriso lindo, de orelha a orelha, que a fazia ainda mais bonita. O homem abraçou-me forte, disse que era o abraço que meu amigo me enviara. Depois, convidou-me a sentar em um dos sofás para contar tudo.
Segundo ele, meu amigo tinha ficado muito contente por atendê-los e o fizera tão bem, que a prótese tinha resultado mais bonita e confortável que a anterior. A mulher estava muito feliz, o trabalho do protético aparecia o tempo todo. Depois de me dizer que o problema tinha sido sanado até o início da tarde e que eles aproveitaram o bonito dia para fazer passeios pela cidade, ele acrescentou:
- “Olha, correu tudo muito bem, como você previu; a única coisa foi... bem, o gerente do hotel, quando nós chegamos, mandou nos chamar. Está tudo bem, não queremos que você faça nada. É que quando a camareira foi arrumar o apartamento, não conseguia desentupir o vaso e teve que chamar o encanador do hotel. Parece que o homem tentou retirar o aparelho, mas o quebrou na tentativa e foi necessário substituí-lo. O hotel cobrou-me pelo prejuízo, pois encontraram a antiga prótese dela obstruindo o vaso. Mas olha, foi até melhor assim, eles a levaram para a cozinha, onde lavaram e desinfetaram com água quente e álcool. Agora ela terá uma de reserva e está tudo bem para nós. Muito obrigados, e boa noite Roberto.”
A ORDEM DOS FATORES...
Miami, Flórida, a península pantanosa entre o Golfo do México e o Oceano Atlântico, descoberta por Ponce de Leon em nome da Espanha, em mil quinhentos e doze. Aliás, por perceber a beleza física e excelente saúde gozada pelos índios seminoles, o explorador espanhol tentou saber destes como as obtinham. As dificuldades linguísticas de comunicação, entretanto, levaram a um mal entendido que custou a vida inteira do espanhol. Os índios atribuíam sua saúde às águas dos pântanos, onde se banhavam, acertadamente. Mas Ponce de Leon entendeu que devia haver em algum lugar da região uma nascente, cujas águas milagrosas fossem capazes de restaurar a juventude e gastou o resto da vida explorando a Flórida em busca da tal Fonte da Juventude.
Agosto de mil novecentos e oitenta e nove, sol e muito calor, lá íamos nós pelo city tour que iniciava a partir da saída do aeroporto, na chegada do grupo. Era a solução encontrada pela empresa para o problema de chegar às seis da manhã vindo do Brasil e só ter apartamentos liberados por volta das quatorze horas. Tirávamos o grupo de um vôo muito complicado a bordo de um apertadíssimo jumbo de uma companhia argentina, lotado de crianças de diversos grupos de tias fulanas e sicranas, para jogá-los num city tour que acabava no almoço. Mais do que a própria aeronave, voavam travesseiros, tênis e até partes do jantar sobre nossas cabeças por toda a noite agitada do vôo.
No início do passeio, fazíamos apostas, eu, a guia local e o motorista, sobre o tempo que levaria para que todos estivessem dormindo a bordo. E olhe que aquela guia nem precisava de microfone, mas o utilizava. A uruguaia tinha uma garganta e tanto.
Naquela sonolenta manhã, a caminho de Miami Beach, Rosalva mostrava as ilhas cheias de mansões magníficas, explicando que das mais de trinta ilhas locais, apenas duas eram naturais, as demais tinham sido construídas pelas mãos humanas.
Uma mulher de meia idade gritou, do meio do ônibus:
- “Ô Rosalva! Como é que eles conseguiram tanta água p’rá isso?”
A reação em cadeia causada pelas gargalhadas, despertaram de vez o grupo.


ASSÉDIO SEXUAL
O tour era pela costa leste dos Estados Unidos, outono de mil novecentos e noventa e um, aquela viagem que seguia de Miami a Nova York. Em meio a um grupo bastante homogêneo, formado por dezenove casais e três mulheres, todos de faixa etária entre trinta e cinco e cinquenta anos, duas das mulheres eram amigas paranaenses viajando juntas e a outra uma mineira de Belo Horizonte, recém quarentona, que ocupava um apartamento sozinha. Os paxes vinham de diversos estados brasileiros e sempre achei impressionante esta capacidade de nosso povo de compor uma mistura homogênea de um multiculturalismo tão evidente ao reunir-se pessoas de diferentes regiões e estados.
Se colocarmos um caboclo do sertão nordestino para conversar com um peão gaúcho de estância, é natural que eles tenham imensa dificuldade para se entender, devido aos verdadeiros dialetos tão diferentes que falam. Mas ao juntarem-se pessoas de diversos estados e regiões, como no grupo que eu tinha então, o resultado da colcha de retalhos era uma verdadeira obra-prima multicolorida.
Já havíamos estado em Miami e Orlando e, naquele dia, visitáramos a pitoresca e histórica cidade de Saint Augustin, com seu imponente Castillo de San Agustin, no norte da Flórida. Depois, já no não menos histórico estado da Georgia, tínhamos acabado de chegar por volta das dezessete horas ao hotel Holiday Inn, no preservado distrito histórico de Savannah. Esta cidade foi uma das primeiras cidades projetadas das Américas, situada às margens do rio Savannah, seguindo planos urbanos trazidos da Europa por seu fundador, o general inglês James Oglethorpe, em mil setecentos e trinta e três. No século passado, toda a área contida no projeto urbano original foi tombada e restaurada, revelando uma linda cidade muito arborizada e repleta de amplos parques, na mais autêntica arquitetura Vitoriana.
Para demonstrar a calorosa hospitalidade sulista, aliada à forte agricultura georgiana, tão logo os hóspedes ocupavam seus apartamentos, funcionários do hotel batiam de porta em porta levando um imenso balaio repleto de belíssimas, reluzentes e grandes maçãs vermelhonas, oferecendo-as aos recém-chegados. Eu avisara ao grupo que nos reuniríamos novamente às vinte horas em frente ao hotel para irmos ao tradicional restaurante Boar's Head[8]. Tão logo as últimas malas seguiram para os apartamentos, eu mesmo corri para o meu, pois além de ter que fazer alguns telefonemas de confirmações de reservas para os próximos dias da viagem e atualizar o serviço contábil do tour, queria muito um bom banho e algum descanso. Os últimos dias tinham sido de trabalho muito pesado nos parques da Disney e a partir dali, o percurso era um pouco mais calmo por quatro dias, até a chegada a Washington.
Um dos problemas mais frequentes, que os paxes enfrentavam por aquele tempo nessas viagens, era com os diferentes tipos de misturadores que encontravam nas banheiras de cada hotel. Fantásticos e modernos, mas de difícil entendimento para manuseio por parte de brasileiros acostumados a chuveiros elétricos ou válvulas simples, uma com um botãozinho vermelho e a outra com um azul. Os hotéis de luxo americanos têm banheiras, ao invés de boxes e, é claro, contam com aquecimento central. Por esta razão, os misturadores, além de regular a intensidade e temperatura do jato de água, precisavam dar opções de ducha ou banho de imersão e ainda fechar ou abrir o dreno da banheira. Para completar, na cabeça da ducha ainda se podia escolher o tipo de jato, desde um banho simples até sofisticadas hidromassagens de impacto. Era comum eu receber telefonemas em meu apartamento, logo após a chegada em cada hotel, para dar instruções sobre o funcionamento desses misturadores.
Naquele fim de tarde, abri logo minha pasta sobre a escrivaninha e esparramei os papéis necessários para o trabalho que precisava fazer, quando o telefone tocou pela primeira vez. Era a mineira solitária:
- "Alô! É o Roberto?
- "Sim, pois não..."
- "Aqui é a Fernanda, meu apartamento é o trezentos e quinze. Sabe, Roberto, umas amigas minhas lá de "Belzonte" me aconselharam a comprar um creme para tratamento dos cabelos que tem que ser aplicado e, depois de vinte minutos, ser removido numa ducha forte de água morna. Eu comprei em Miami e hoje, que tivemos este tempinho livre, decidi usá-lo. O problema é que o apliquei e já está na hora de remover, mas não consigo fazer funcionar esta droga de chuveiro. Será que você poderia dar um pulinho aqui para me ajudar?"
- "Claro, é para já!"
Tão logo ela desconectou, disquei o número do housekeeping[9] e informei que a hóspede do trezentos e quinze precisava de ajuda urgente para operar o misturador do banheiro, voltando a me focar em minhas atividades.
Mais tarde, às vinte horas, fui ao encontro do grupo para embarcarmos rumo ao restaurante. Já estava lá conversando com alguns excursionistas, quando a mineira chegou, com a cara mais amarrada do mundo, um bico de assustar. Ao passar por mim e embarcar, tratei de perguntar-lhe:
- "Boa noite; a camareira foi ajudá-la com o chuveiro?"
Ela me olhou, indignada e rosnou de volta:
- "Foi, obrigada..."
Para encurtar a história, depois da viagem, de volta ao Brasil, fui chamado pela supervisora da área para esclarecer o porquê de uma passageira ter reportado em seu opinário que o guia tinha sido péssimo e nada cortês. Suspenso, tive que enfrentar a "punição" de passar três meses trabalhando como apoio, na filial de Salvador, hospedado no Hotel Othon, cinco estrelas na orla de Ondina. Explica-se, três meses fora da escala internacional, significavam uns bons quinze mil dólares a menos no bolso ao final do ano.
BOA NOITE!!!
Era a primeira vez que eu atravessava o Atlântico e visitava a Europa. Tinha saído, no verão de mil novecentos e oitenta e seis, de mais de treze anos trabalhando na área de engenharia elétrica, calculando e detalhando instalações de iluminação em refinarias de petróleo e usinas hidrelétricas. Com o fundo de garantia nas mãos e um bom sócio, compramos e reformamos um pequeno restaurante falido na área dos arcos da Lapa, no Rio de Janeiro. A despeito de minha inexperiência, a casa se tornou um excelente sucesso, que logo atraiu um grupo de investidores em bares e restaurantes cariocas, que nos fez uma proposta realmente irrecusável de compra, onde cada um de nós levou em espécie, à vista, cerca de oito vezes o que havíamos despendido poucos meses antes.
Com tanto dinheiro, que nunca havia visto junto em minhas mãos, decidi realizar um antigo sonho da adolescência, de conhecer a fundo a Europa. Arrumei uma boa mochila com o essencial e parti para Lisboa, levando pouco dinheiro, o que fazia parte dos planos e um passe de trem para rodar por meses pelo velho continente. Depois de conhecer a capital lusa, tomei um trem para Paris. Seria a glória, a Cidade Luz, quem nunca sonhou com isso?
As cabines de primeira classe dos trens europeus, que meu passe dava direito, tinham ar condicionado e seis confortáveis poltronas em dois grupos de três frente-a-frente. De um lado, a porta de entrada desde o corredor logitudinal do vagão, do outro, um janelão lacrado de vidro e, acima de cada linha de poltronas, um bom bagageiro em gradil metálico reforçado.
Cada poltrona possui uma alça, feita do mesmo tecido do estofamento, na sua parte frontal. Puxando-a, o assento desliza para a frente até a metade exata da distância da poltrona da frente, o suficiente para que o encosto deslize junto até ficar na horizontal, no mesmo plano do assento. Isso significa que, ao puxar dessa forma duas poltronas frontais uma à outra, obtém-se uma boa cama de solteiro, mas puxando as seis, a cabine toda vira uma confortável cama "king size", onde umas quatro pessoas adultas podem dormir juntas, sem problemas.
O trem deixou Lisboa no início da tarde e eu ocupava sozinho uma cabine. Uma estação depois, uma família portuguesa veio juntar-se a mim. Eram marido e mulher na mesma faixa etária minha, entre trinta e trinta e cinco anos, acompanhados pelos filhos, uma menina de treze anos e um garoto de dez. Eram comerciantes e viajavam em férias para visitar parentes em Paris. Eram muito animados e carinhosos uns com os outros, uma típica família de classe média, extremamente simpáticos e amistosos, me encantei com eles e passamos o dia conversando muito, eles querendo saber muito sobre o Brasil.
Quando a noite caiu, já por volta das vinte e duas horas e após termos todos lanchado no vagão restaurante, passamos pelo toalete, onde cada um de nós escovou seus dentes e voltamos a nossa cabine. Meus novos amigos me informaram que preparariam a mesma para a noite. Eles, com minha ajuda, retiraram toda a nossa bagagem dos bagageiros e foram dispondo-a no piso, à medida que puxavam as poltronas por cima, desde as da janela. Quando terminamos, a cabine já era uma grande cama e estávamos todos descalços sobre ela. A mãe e o pai, então, ocuparam-se de forrar os bagageiros com almofadas que haviam trazido em grandes sacolas, enquanto os filhos se despiam por completo e vestiam seus pijamas, com as luzes acesas, o que já me causou algum espanto.
Depois de ajudarem as crianças a subir e acomodar-se em seus "beliches", dando-lhes carinhosos beijos de boa noite e recomendando que me desejassem boa noite, os dois adultos também se despiram por completo, numa naturalidade espantosa, como se estivessem sós em seu quarto em casa. A mulher, ainda nua, arrumou cuidadosamente as roupas da família bem dobradas a um canto e, depois, vestiu uma camisola enquanto o marido também vestia o pijama. Eu estava totalmente atônito, mais perdido que cego em tiroteio, quando ambos me desejaram boa noite e o homem pediu licença para regular a temperatura do ar condicionado e se deitaram, pedindo-me o favor de desligar as luzes ao deitar, o que fiz a seguir.
Detalhe: o homem se estendeu sobre o espaço mais próximo da porta, a esposa ao centro e meu espaço era ao lado dela, junto á janela. Quando o dia clareou, toda a operação inversa se deu da mesma forma, mas eu sentia que já não era mais o mesmo da noite anterior, agia com a mesma naturalidade deles. E me sentia muito bem em relação a isso e grato pela confiança que depositaram em mim, um completo estranho, ao compartilhar comigo, de forma tão natural, a intimidade de sua família.
BON JOUR!!!
Chegando a Paris pela primeira vez, num entardecer de junho de mil novecentos e oitenta e seis, me despedi da família portuguesa na plataforma da Gare d'Austerlitz e segui seu conselho de procurar um guichê de informações turísticas em busca de acomodações baratas. Havia uma pequena fila em frente ao quiosque que ostentava um grande "i" numa placa. Após alguns minutos, chegou minha vez de ser atendido por uma simpática mocinha uniformizada.
Eu estava em estado de graça desde a estação de Hendaye, na fronteira com a Espanha, onde a polícia de imigração francesa havia carimbado meu passaporte. Nesta estação, ocorria algo bastante interessante para mim: após o desembarque de todos os passageiros, os vagões do trem, no qual eu vinha, eram desprendidos de seus chassis e içados por uma imensa ponte rolante de guindastes. Assim suspensos, eram transportados para o outro lado da plataforma, o lado francês, onde os passageiros que já haviam passado pelo controle de imigração aguardavam. Ali, os vagões eram arriados com precisão sobre novos chassis que os aguardavam na linha férrea que daria continuidade à viagem. O motivo desta operação era porque, até aquela época, a bitola da linha férrea[10] em Portugal e Espanha era menor que em quase todo o restante da Europa. Podia-se sentir a diferença, pois naqueles dois países os trens balançavam muito e faziam curvas em menor velocidade.
A funcionária do guichê de informações perguntou-me quanto estaria disposto a pagar pela acomodação, informando que havia um grande leque de opções. Respondi que poderia arcar com o equivalente a vinte dólares americanos por dia e ela folheou um catálogo. A seguir, retirou de sob o balcão um mapa de Paris com as linhas de metrô, fez com sua caneta um círculo em torno da estação onde nos encontrávamos, no sudoeste da Cidade Luz. A seguir, sublinhou o nome da linha de metrô que eu deveria pegar na estação anexa, marcou a estação onde eu deveria fazer uma baldeação para outra linha e circulou a estação Mairie de Clichy, onde deveria saltar, informando que a poucos metros da mesma eu encontraria o Centre de Séjours Lèo Légrange, uma espécie de hotel para estudantes. Mostrou ainda que a Tour Eiffel ficava bem próxima de lá, completando que Clichy era na verdade uma das cidades-satélite de Paris e que o hotel estava bem próximo da sub-prefeitura, a tal mairie. Completou informando que o pernoite era de cento e cinquenta Francos, exatamente o que eu me dispunha a pagar, também que incluía um desjejum simples matinal e depois, puxando para si um aparelho telefônico, perguntou se estava bem para mim.
Com minha anuência, ela levantou o fone e discou um número, depois de um breve tempo foi atendida e fez uma reserva em meu nome, informando que eu estaria chegando em pouco mais de meia hora. Desligou e passou para mim, com um amável sorriso, o mapa com as marcações e um pedaço de papel onde anotara nome e endereço do hotel. Apontou a direção das escadarias de acesso à estação do metrô e despediu-se desejando-me uma feliz estada. Lá fui eu com a mochila às costas, pisando o pavimento da antiga estação parisiense, me sentindo o próprio dono do mundo.
Tudo correu bem, devido às preciosas informações da jovem francesinha da estação, em quarenta minutos lá estava eu subindo os degraus para a rua, em frente ao imponente e clássico prédio da Mairie de Clichy. Correndo os olhos pela calçada oposta, logo vi a placa na fachada de um prédio comum de oito andares, onde dizia: "Centre de Séjours Lèo Légrange". A noite já caía quando entrei pela porta principal e me dirigi ao balcão de uma sala anexa ao saguão, onde uma plaqueta indicava a recepção. Era tudo muito simples, o próprio saguão de entrada era totalmente despojado, com as portas de três elevadores, o acesso às escadarias, uma porta com uma plaqueta que informava que o acesso era só para funcionários e a porta da recepção. Esta era apenas uma pequena sala com um balcão de madeira lisa, por trás dele duas escrivaninhas com suas cadeiras e diversos arquivos metálicos. Lembrava uma antiga repartição pública.
A funcionária, uma jovem senhora que estava só àquela hora, estendeu-me uma ficha de registro e uma caneta e deixou que eu a preenchesse sem me dirigir a palavra. Quando terminei, fez algumas anotações sobre a mesma, retirou de uma gaveta, sob o balcão, uma chave presa a um pequeno chaveiro plástico onde se lia "716" e me entregou, pronunciando as primeiras e únicas palavras:
- "Le petit déjeuner au huitième étage, jusqu'a neuf heures. Bonne nuit!"[11]
Tomei o elevador e saltei no sétimo andar. O lobby dos elevadores, neste andar, contava com o acesso às escadarias de um lado, uma porta de vai-e-vem dupla do outro, com uma plaqueta que indicava: "Salle de Bains"[12] e um comprido corredor com as portas dos quartos, em frente. Empurrei uma das folhas da porta do banheiro e pude ver, na parede oposta, uma linha de seis mictórios masculinos de louça, concluindo de imediato que, aquele, era o banheiro masculino. Ao percorrer o corredor dos quartos, chamou-me a atenção o fato dele terminar sem saída, só haviam quartos numerados, não havia outro banheiro, o feminino.
Intrigado, entrei no setecentos e dezesseis. Havia uma pequena ante-sala com uma pia e logo o quarto em si, com um beliche de um lado, uma cama de solteiro do outro, um pequeno guarda-roupas e, sob a janela ao fundo, uma longa escrivaninha com três cadeiras. A janela estava totalmente aberta e foi bem a imagem central da paisagem que se descortinava nela que me hipnotizou. Deixei cair atrás de mim a mochila que já estava soltando para arriar. Contra um céu azul recém escurecido e estrelado, lá estava ela toda branca de luz, linda, imponente, perfeitamente enquadrada como num retrato: a Tour Eiffel!
Depois de despertar do transe hipnótico e de ter passado bons minutos a apreciá-la, voltei a descobrir meu quarto, percebendo que sobre a cama de solteiro e a cama inferior do beliche havia mochilas, roupas e pertences de outros dois hóspedes. Concluí que eu completava a lotação e preparei as coisas para ir tomar um banho. Me despi, enrolei-me com a grande toalha que estava dobrada sobre meu travesseiro, apanhei minha saboneteira e saí para o banheiro, que esteve deserto durante todo o tempo que o ocupei. Aliás, o banheiro e o corredor. Ainda não eram vinte e três horas, numa noite quente de verão e provavelmente os demais hóspedes estivessem saboreando a noite parisiense. Mas eu decidira que descansaria da longa viagem para sair cedo, na manhã seguinte, para desbravar Paris.
Pouco depois de me deitar, chegaram juntos os meus dois novos companheiros de quarto. Eram um americano e um belga, mais jovens que eu e aparentemente lavados interiormente de cerveja. Foram muito simpáticos e receptivos, ambos. Levantei-me para as apresentações, depois subi e fiquei sentado sobre a cama ouvindo seus relatos das peripécias vividas ao longo do dia. Eles conversavam em Inglês, apesar do forte sotaque do belga, pois americanos dificilmente conhecem mais que três palavras em qualquer outro idioma. Enquanto eles ficaram fora, no banheiro, peguei no sono e nem os vi retornar.
Acordei muito cedo, sendo agraciado pela maravilhosa cena que aquela janela mais uma vez me proporcionava: a alvorada sobre a Tour Eiffel. Percebi que a cidade era toda muito plana e formada de construções baixas, até onde minha vista alcançava. Meus companheiros dormiam pesadamente. Escovei os dentes na pia do próprio quarto e me despi, tornando a me enrolar na toalha e sair empunhando a saboneteira. Já no corredor, lembrei-me da questão do banheiro ser apenas masculino. Eu tinha lido em avisos na recepção, que aquela era uma hospedaria para estudantes de ambos os sexos e de qualquer idade, que durante os meses do verão era aberta ao público em geral. Então concluí de imediato que as moças deveriam ficar em andares diferentes.
Tinha dado poucos passos, quando vi um pequeno pacote caído no piso. Era um pacote feito em papel comum e amarrado com elásticos de borracha. Apanhando-o, foi fácil entender que se tratava de um polpudo maço de dinheiro. Olhei em volta, mas estava tudo muito quieto e deserto. Voltei imediatamente ao quarto e tratei de esconder o achado em minha mochila. Tornei a sair e desta vez entrei no banheiro. Como na noite anterior, coloquei minha saboneteira no suporte junto a uma das seis duchas alinhadas na parede adjacente aos mictórios e pendurei a toalha num dos ganchos ao lado das pias, indo me aliviar num dos mictórios. Havia ainda, na parede da porta, uma linha de quatro pias com um grande espelho e, no último lado, quatro meias portas, dos vasos sanitários.
Assim que meu jato mictório começou a jorrar para a bacia de louça, escutei o ranger da porta de entrada atrás de mim e, um segundo depois, soou uma doce e melodiosa voz de mocinha em indefectível Francês:
- "Bon jour!"
O piso desapareceu de sob meus pés descalços, o jato de urina escreveu um imenso oito pelos azulejos da parede à minha frente. Eu não conseguia estancá-lo e não sabia o que fazer. O som da voz foi se deslocando pelo banheiro num falatório muito animado que exaltava a beleza do novo dia que nascia e eu sabia que ela falava comigo pelo direcionamento do som e porque a porta só rangera uma única vez. Quando finalmente consegui conter a urina, assustadíssimo voltei o rosto e espiei sobre o ombro esquerdo, quase desmaiando a seguir. Uma jovem de, no máximo, vinte anos, completamente nua, tinha acabado de deixar sua própria saboneteira sobre o suporte da ducha ao lado da que eu iria usar e vinha segurando a toalha já embolada para passar novamente por trás de mim e enganchá-la ao lado da minha. E falando o tempo todo, em Francês.
Lembrei da família portuguesa e decidi que a melhor opção era agir com a mesma naturalidade que ela própria. Assim foi, liberei meu fluxo e terminei de me aliviar já falando com ela ao mesmo tempo, contando que era brasileiro e que era minha primeira manhã em Paris. Fui juntar-me a ela sob minha ducha e conversamos o tempo todo até a porta do quarto dela, onde nos despedimos enrolados em nossas toalhas, desejando um ótimo dia um ao outro. Ela era do norte da França e naquela manhã tomaria um trem a caminho da Grécia, onde pretendia passar o resto do verão. Durante o tempo em que estivemos juntos no banheiro, outras pessoas, de ambos os sexos, chegaram para sua higiene matinal, todos demonstrando igual naturalidade, a despeito de gênero, procedência e idade.
Meus companheiros estavam de saída para o banheiro quando entrei no quarto. Vesti-me rapidamente, aproveitei a ausência deles e abri o pacote encontrado mais cedo. Era uma boa soma em Francos franceses trocada em notas miúdas, algo equivalente a uns três a quatro mil Reais de hoje. Tornei a fechar o embrulho e recoloquei-o no esconderijo, na mochila. Saí do quarto e tomei um elevador para o escritório da recepção, no térreo. Lá, informei ao funcionário que atendia àquela hora, que havia encontrado um pertence perdido por alguém numa das dependências do hotel. Que este objeto estava comigo, que estaria no desjejum até sair e deixei ainda meu nome e número do quarto que ocupava.
Enquanto terminava de comer a meia bisnaga de pão francês com manteiga, acompanhada de uma caneca de café com leite, o desjejum completo da hospedaria, a que cada hóspede tinha direito, o funcionário da recepção surgiu com um jovem casal de pouco mais de vinte anos cada um, a mocinha aos prantos e soluços. Ele os apresentou a mim, anunciando que haviam acabado de reportar a perda de um pacote de dinheiro, que era tudo o que possuíam. Após nos apresentar, o funcionário deixou o local para retornar a seu posto e eu perguntei aos jovens como estava acondicionado o dinheiro, em que moeda, quanto era a soma e onde teria sido possível que o tivessem deixado cair. A moça não parava de chorar. O rapaz contou que eram pobres e haviam se casado na véspera, em sua cidade natal, na Bélgica. Disse que, na festa das bodas, as famílias e amigos haviam procedido a uma coleta de dinheiro para presentear os noivos com recursos para a lua-de-mel, que pretendiam passar no sul da França, para onde seguiriam naquela manhã tomando o TGV, o trem-bala francês. Descreveu com detalhes o embrulho, que ele próprio havia feito, informou a soma total e a moeda francesa, da forma como a haviam recebido de presente. Acrescentou que estavam hospedados no sétimo andar e que, como pouco antes da chegada ao hotel no final da noite anterior, haviam checado a presença do pacote consigo e já não o encontraram pela manhã no quarto, julgavam tê-lo deixado cair pelo corredor daquele andar, ou no elevador.
Eu o ouvira com ar grave, mas quando ele encerrou sua narrativa, soltei um sorriso tranquilizador e disse a eles que o pacote estava em meu poder, escondido em minha mochila no quarto. Foi como se um raio de sol entrasse pela janela e iluminasse o rosto da moça, que se atirou sobre meu pescoço e começou a me beijar repetidas vezes, inclusive nos lábios, sob o olhar sorridente do jovem noivo. Descemos até meu quarto e eu lhes entreguei o pacote. O rapaz começou a dizer que iriam me recompensar com algum dinheiro, mas eu o interrompi e recusei com veemência. Lembro-me bem de uma frase que a mocinha proferiu então:
- "Puxa, eu nunca havia conhecido uma pessoa do Brasil antes, fico feliz em saber que é um povo tão honesto e bondoso!"
Desejei a eles muitas felicidades na lua-de-mel e na vida de casados, antes de nos despedirmos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

DEIXE AQUI SEUS COMENTÁRIOS, SUGESTÕES OU SOLICITAÇÕES: