domingo, 14 de março de 2010

INDIGNAR-SE


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ESCREVI ESTA CRÔNICA NO INÍCIO DE 2010,
MAS ELA É SEMPRE ATUAL. 
EM 2019, COM TODO ESTE MAR DE CORRUPÇÃO, VIOLÊNCIA E LAMA, O TEMA PERMANECE BEM VIVO.
ESPERO QUE VOCÊ TAMBÉM ESTEJA MUITO INDIGNADO...
A palavra soa estranha, pois indigno significa: aquele que não tem dignidade. Mas indignar-se quer dizer exatamente o contrário; ou seja, ter tanta dignidade a ponto de ficar profundamente aborrecido com a indignidade alheia.
Indignar-se significa importar-se. Seria tão bom se as pessoas se importassem mais com as coisas que estão ao seu redor. Parece que o importar-se confundiu-se com a futilidade. As pessoas se importam se você estiver sem roupas, se importam se você for pobre, se importam se você não professar a mesma religião que elas, se importam se você não tiver a mesma cor de pele que elas, se importam se suas preferências sexuais forem diferentes das delas, se importam se seu carro for mais novo e possante do que os delas, se importam se sua roupa for mais bonita do que a delas, se importam se você tiver mais coragem do que elas para ser quem você é. E aí se importam muito.
Mas isso me deixa indignado. Assim como tantas coisas que sei que não posso fazer muito para mudar, mas também sei que minha parte, muito importante assim como a sua, é não igualar-me pelo descaso, a preguiça, o medo ou a comodidade.
Não posso acabar com a miséria no mundo, nem com a causa dela, a opressão da ganância dos poderosos; mas posso confessar-me indignado com ela, e não tornar-me conivente com tal sistema.
Não posso tornar minha cidade mais limpa, talvez nem convencer toda a população a não sujá-la, na verdade não vou nem sair por aí recolhendo lixo; mas nunca vou atirar meu lixo fora do local apropriado, e vou chamar a atenção de meus amigos para isso e continuar indignado pela sujeira das ruas, parques e praças públicas.
Não posso convencer o mundo a aceitar minha nudez, ou as razões que me fazem sentir melhor vivendo assim; mas posso aceitar a nudez de todos que assim preferirem estar, e indignar-me pelo preconceito dos pobres de espírito que insistirem em distorcer meu ideal.
Não posso acabar com a violência no mundo, até porque suas causas estão fortemente radicadas aos dois extremos da pirâmide social; mas posso indignar-me e entristecer com as notícias tão alarmantes e muitas vezes horrorosas, assim como não praticar a violência, estimular meus amigos a fazer o mesmo e escolher melhor meus eleitos para que estes tomem atitudes positivas.
Não posso criar uma consciência civil e ecológica na humanidade, se Deus a fez assim há de haver uma razão; mas posso indignar-me pelo descaso e fazer a minha parte. E a parte de cada um é pura e simplesmente agir de acordo com sua consciência, sendo apenas natural.
Há quem defenda a idéia de que o princípio do Naturismo, de respeito do indivíduo ao seu próprio corpo, seja confundido com o princípio do Naturalismo; ou seja, respeitar seu corpo é não usar nele nada que lhe possa prejudicar, no vestuário, como na alimentação. Maravilha, parabéns àqueles que forem plenamente felizes e realizados seguindo tais preceitos; muita saúde e vida longa! Mas, não serão também naturistas aqueles que descobrirem que o prazer não é um pecado, mas um dom, apesar de ter seu custo? Não serão também naturistas aqueles que apenas agirem com naturalidade, seguindo seus impulsos apoiados no corrimão da consciência civil e ecológica?
Fique indignado com aqueles que preferem falar mal das atitudes espontâneas, livres e não corruptoras dos outros, por medo de apenas ser o que gostariam de ser. E mesmo o meio naturista anda tão cheio disso, e é tão triste, dá um dó dessas pessoas débeis, incapazes de serem felizes. Revolte-se, sua revolução não implica em pegar em armas, nem mesmo lutar; basta não cair neste lugar comum.
Não precisamos viver nus para sermos naturistas, ninguém precisa, basta não ter motivos para se envergonhar não só de seu corpo, mas também e principalmente de sua alma, sua personalidade. Não precisamos todos ser iguais para nos aceitarmos; as diferenças é que vão acrescentar, assim poderemos debater, discutir, crescer e amar.
É por isso que amo a todos vocês. É, você também. Não pense que eu possa ter algum motivo para não amá-lo, pense apenas na montanha de motivos que eu tenho para amá-lo. Mas fique indignado com quem pensar o contrário, apesar de amá-lo e respeitá-lo como semelhante seu, com tantos medos quanto você, talvez mais, talvez menos.
E não se esqueça de se olhar nos olhos no espelho todas as manhãs, nu na intimidade de seu banheiro; sua conduta naturista deve começar por aí, não tendo vergonha de si mesmo, ainda que esteja indignado. Com toda a dignidade.
Naturalmente indignado.

terça-feira, 9 de março de 2010

DOMINGO EM SÃO JOÃO DO PARAÍSO, MASCOTE, BAHIA

Lá fora está rolando a feira da semana, um acontecimento. Armam-se todos os domingos muitas barracas, vendendo desde dvd's piratas a cebolas, passando por relógios de pulso falsificados, utensílios baratos e roupas de gosto duvidoso.
Vêm ônibus e caminhões de toda a região, trazendo todo o povo da roça e você pode imaginar a fauna!!! Colocam aparelhos de som por todo lado, tocando uma babel de arrochas, sertanejas e por aí vai. Tudo ao mesmo tempo. A "cidade" fica cheia e movimentada.
Depois de meio-dia, começam a desmontar as barracas. Ônibus e caminhões se vão com o povaréu levando sacos e sacos de compras, todos bêbados e felizes. Ficam apenas os bêbados locais, por um par de horas, comendo churrasquinho de gato nas portas dos botecos. Depois, tudo cai numa pasmaceira que só volta a se agitar pelas oito da noite, quando os jovens vêm para a praça paquerar, usando as roupas e perfumes de domingo.
Vou sair pro calor agora e misturar-me à turba.

(São João do Paraíso é distrito do município de Mascote, sul da Bahia.)

ENCONTRO COM O PARAÍSO - A VIDA AO NATURAL

NATURISTA

Aquele que pensa e age com naturalidade;

que é coerente

com seu próprio ser.


Imagine-se,

ao menos uma vez,

alçando vôo para fora de sua gaiola dourada,

pela imensidão azul,

acima dos jardins floridos...

I

A CAMINHO

Acordei cedo, mas muito bem disposto; procurei o relógio sobre a mesinha de cabeceira, cinco e cinqüenta. Quis ver o dia; ao abrir a janela do quarto não pude ver nem a piscina, que estaria a uns vinte metros, se tanto. A cerração era tão densa que parecia querer entrar pela janela sob a forma de um monstro; só que era um monstrinho bem camarada, pois não significava outra coisa, senão o prenúncio de um belo dia de verão.

Chovera por quase todo o dia anterior, quatro de fevereiro. Tínhamos saído de Porto Alegre antes do amanhecer, eu ligara de casa avisando que estava pronto, a mãe dissera que desceriam em minutos, ela e o pai, para que os apanhasse.

As manas estavam esperando-me com os dois; fizeram-lhes mil e uma recomendações, sobrando algumas para mim próprio:

- Cuidado para não esquecer os horários dos remédios!

- Pai, não vá comer doces!

- Mãe, liga em caso de qualquer problema!

- Roberto, não vá correr! Cuidado com a estrada, que é muito perigosa!

Cuidados de amor; não se percebe o quanto são inócuos, até incômodos, ao dizê-los e repeti-los inúmeras vezes. São sempre recebidos com desconforto, apesar de carinhosos.

Eles estavam muito bem; já havia anos que costumavam passar temporadas no Gravatal, eram muito apegados àquele lugar, onde podiam esquecer de tudo e curtir-se. Mais recentemente, devido ao agravamento geral de seu estado de saúde, tínhamos praticamente proibido o pai de dirigir sozinho até lá; ele esperneara um bocado, mas terminara acatando nossa decisão. Eu os estava levando, ficaria com eles por um dia, deixando-os sós a partir da manhã seguinte; trataríamos com um motorista de taxi, conhecido deles, para levá-los à rodoviária quando fossem embora. Minhas irmãs os receberiam na chegada a Porto Alegre.

A chuva começara com o clarear do dia, em nosso caminho; foi quando passávamos por Torres, entrando em Santa Catarina. Dali para a frente foi chuva e muitos caminhões pela BR-101. Um absurdo. Como pode uma rodovia federal, tão importante e movimentada como aquela, ter uma única pista de rolamento, com mão e contramão?

A recomendação das manas era lembrada, eu prosseguia com cautela; fizemos uma parada técnica em Sombrio, aproveitei para reabastecer o velho Voyage azul. O pai brincou a respeito dos nomes tão lúgubres dos municípios da região: Sombrio, Ermo, Turvo, Jacinto Machado.

Em Tubarão, deixamos a cento e um, tomando a rodovia estadual. O pai estava bastante entusiasmado com a aproximação da chegada; gostava muito de lá. Creio que os dois tinham muito boas recordações dos momentos que passaram juntos naquela paz. Chegamos pela metade da manhã, nos instalamos no Hotel do Lago, seu preferido. Ficamos em apartamentos do mesmo corredor e eles fizeram questão de passar o restante da manhã mostrando-me as instalações do hotel.

Almoçamos animadamente no restaurante do próprio hotel. Fui cúmplice dele no consumo de duas garrafas de cerveja; se as manas soubessem, me teriam enforcado, com toda a certeza. Terminado o almoço, ele nos convidou para um passeio a pé, aproveitando-nos de uma rápida estiagem. Saímos às ruas passando por outros hotéis, desviando das poças d'água e conversando muito. Podia-se sentir o imenso orgulho dele servindo-me de guia, falando do local no passado, num tempo em que este ou aquele hotel ainda não houvesse sido construído.

Que bom foi vê-lo assim, tanto mais pela admiração e felicidade estampadas na expressão de minha mãe. Logo, infelizmente, o céu voltou a tornar-se escuro, fazendo-nos apertar o passo de volta ao hotel, onde já chegamos um pouco respingados. Choveu forte e sem parar pelo restante da tarde e à noite.

No final da tarde, fomos aproveitar as águas quentes nas banheiras de hidromassagem de nossos apartamentos; combinamos relaxar um pouco, antes de voltarmos a nos reunir para o jantar.

O hotel estava cheio, ocupamos uma das mesas tão logo o restaurante abriu; minutos depois já havia uma fila de espera. Foi bom que tivéssemos comido cedo, assim conseguimos uma mesa livre na sala de jogos para jogar pif-paf e nos divertirmos muito, até por volta das dez.

Logo que termináramos o jantar, o pai decidira ir ao apartamento, queria usar o toalete e apanhar o baralho. A mãe dirigira-se ao toalete da própria sala de jogos; ao regressar e ver que ele não estava na mesa comigo, decidiu ir vê-lo no apartamento, sem me dizer nada. Só que ao tomar o corredor, não percebeu que ele já estava na recepção, entregando a chave.

Ele também não a vira, e veio sentar-se comigo perguntando por ela; respondi que não sabia, acreditava que muito provavelmente tivesse voltado ao restaurante, à procura de água para beber. Como ela demorasse muito a regressar, decidimos disputar entre nós a primeira mão do jogo. Ouvimos distantes e insistentes pancadas em alguma porta, comentamos que deveriam ser crianças, havia muitas no hotel. As pancadas aumentaram de intensidade, e nós discutimos a irresponsabilidade dos pais daquelas crianças que estariam perturbando a paz daquela maneira, impunemente. Lá pelas tantas, a mãe irrompe quase sem fôlego na sala de jogos:

- Hélio! Tu estás aqui homem de Deus! Quase botei abaixo a porta do apartamento; julgava que tu tivesses passado mal. Quando vim à recepção pedir ajuda para abrirem a porta, disseram-me que a chave estava com eles; daí resolvi passar por aqui. Que susto!

Apesar de muito assustada, acabamos nos divertindo com o acontecido, enquanto jogávamos. Nos despedimos à porta de meu apartamento. Entrei, meu coração acelerou-se, a grande hora se aproximava. Rearrumei minhas coisas, deixando tudo pronto para a manhã seguinte; deitei-me, tratando de relaxar e dormir logo, para acordar bem cedo outra vez.

Depois de barbear-me com cuidado ao final do gostoso banho matinal, pensei, enquanto me vestia, que aquela poderia ser a última vez que me vestiria pelas próximas três semanas. Apanhei minhas coisas e saí para o corredor, bati de leve à porta do apartamento dos velhos, a mãe atendeu logo, estava radiante. Quanto ela mudava quando estava longe de casa; como se tornava mais feliz ao viajar. Como lhe fazia bem estar longe das coisas que a lembrassem de um pesado e sofrido passado, em que criara sete filhos com muitas adversidades, inclusive com os problemas normais que um casal da geração deles tivera de enfrentar para se relacionar.

O pai ainda estava deitado, não disfarçava sua insatisfação com minha decisão de seguir para onde estava indo. Estava mesmo emburrado, nem quis levantar-se; tive que despedir-me dele assim mesmo, enquanto voltava-se para o outro lado, fingindo tentar voltar a dormir. Como eu o entendia bem naqueles momentos; lembrei-me de quando ele fora levar-me à estação rodoviária de Porto Alegre, exatos vinte anos antes, no dia em que parti de mudança para o Rio de Janeiro. Ele nem descera do carro, virando o rosto quando me despedi. Só que pude ver uma lágrima rolar de seu olho direito, por isso evitara me encarar; naquela manhã, no Gravatal, ele se repetia.

Deixamos que permanecesse ali, imerso em seu sombrio e indecifrável universo, fingindo dormir; fomos ao restaurante, que ainda estava fechado pois só abriria às sete. Estava seco por um copo de leite bem geladinho, a mãe entrou pela cozinha, pediu a uma funcionária e foi atendida; tomei o leite com gosto e saímos para o estacionamento. A cerração ainda era bastante densa, mas a claridade era intensa, o que indicava que faltava bem pouco tempo para dissipar-se e mostrar finalmente a cara que o dia iria ter.

Guardei minhas coisas no porta-malas e dei partida ao motor à álcool; a umidade da noite trouxera uma madrugada um tanto fria, era necessário aquecê-lo bem antes de sair. Deixei-o trabalhando com o afogador ligado, enquanto conversava com dona Amélia em pé, ao lado do carro. Alegrei-me outra vez mais por seu estado de tão boa disposição e felicidade; lamentei comigo mesmo pela teimosia do pai, mas não a deixei perceber. Ao contrário, senti vontade de apertá-la contra o peito, para beijá-la com carinho; ela estava ali comigo, compartilhávamos nossa alegria e felicidade. E foi assim que nos despedimos, entrei no carro e saí devagar, observando-a regressar ao hotel, enquanto descia pela rampa do estacionamento. No momento em que passava em frente à entrada principal olhei, lá estava ela à porta, acenando para mim. Senti-me como se tivesse acabado de deixar seu útero, e a estivesse conhecendo por fora; a amei ainda mais.

II

A TRAJETÓRIA

Deixei o Gravatal para trás, alcançando a estrada com o coração apertado. Respirando fundo, pensei no fato de menos de duzentos quilômetros, pouco mais de duas horas, estarem a me separar da realização daquele grande sonho acalentado desde a infância.

A viagem em si era fácil, ao chegar à BR-101 a cerração já se havia dissipado e o tráfego não era intenso, mas já fazia calor. Os quilômetros foram sendo deixados para trás, em cada um fui deixando uma conta do rosário de toda minha vida anterior; em cada conta ficava a certeza de nunca realmente ter deixado de ser feliz, ainda que nos momentos mais difíceis. Comecei a percorrer o caminho de minha experiência naturista; vi-me com dez anos de idade.

Era o outono de 1963, um velho tio e padrinho de meu pai, tio Jorge, havia falecido; os herdeiros haviam decidido vender a casa onde vivera só por muitos anos. Fomos juntos, eu e meu pai, esvaziar a casa. Lembro-me como se tivesse acontecido há uma semana, de quando meu pai destrancou e abriu a porta de um quarto isolado, uma meia-água que ficava nos fundos do terreno. Entramos juntos pela penumbra da peça, e o que vimos deixou-me excitadíssimo:

Tirando a pequena área livre logo junto à abertura da porta, o restante do cômodo continha uma verdadeira montanha de jornais, livros e revistas; tudo muito antigo, a julgar pela cor amarelada dos papéis e pelo forte cheiro de mofo.

Atiramo-nos afoitos à pesquisa arqueológica. Havia muitos exemplares do extinto Diário de Notícias, do Correio do Povo, das revistas O Cruzeiro, Manchete e Seleções do Reader's Digest, entre outras preciosidades. Porém, levamos alguns instantes para descobrir amargamente, que todo aquele tesouro estava fortemente defendido pelo maior exército de pulgas que jamais pudéssemos imaginar existir. Pela maneira como todo aquele papel estivesse amontoado sobre o piso, podia-se imaginar que tio Jorge abrisse a porta muito raramente, e apenas para atirar um outro monte de jornais e revistas velhos para dentro.

Antes mesmo que pudéssemos entender o que estava acontecendo, vimos nossas roupas tornarem-se negras e vivas. Fui literalmente arrancado de lá por meu pai, que fechou a porta atrás de nós. Corremos para o banheiro da casa, onde tiramos rapidamente nossas roupas; ele colocou-me debaixo da água do chuveiro e foi estendê-las ao sol, no pátio dos fundos. Era horrível, as picadas doíam como se queimassem todo o corpo.

Voltamos para casa derrotados pelas pulgas, e amargamos aquela derrota por uma semana. Voltamos à casa no sábado seguinte, munidos de latinhas de inseticida em pó. Desta vez fiquei esperando, ele entrou sozinho no cômodo, pressionando sem parar uma latinha em cada mão, espargindo o pó sobre os montes de papel. Depois de acabar com a última latinha fechou a peça, onde tornamos a voltar, vitoriosos, somente na outra semana.

Foi uma festa, vestíamos roupas velhas, e mergulhamos juntos no túnel do tempo. Quantas revistas e jornais recheados da história das últimas décadas, eu devorava cada exemplar que pegava. Lá pelas tantas, encontrei uma pequena revista; o formato não passaria de uns treze por dezoito centímetros, com umas vinte folhas, se tal. A capa era em cromo, com uma foto colorizada de uma moça completamente nua, numa paisagem muito bonita; embaixo, servindo de barra para a foto, uma tarja vermelha com o nome da revista em letras grandes: "NATURALISMO".

Todas as páginas exibiam fotos naturistas em preto e branco, os cenários eram muito bonitos; havia fotos num rio, num bosque, em alguns rochedos e numa área como um clube, com salão de jogos e piscinas, entre outros equipamentos. Nas fotos, o que pareciam ser famílias com homens, mulheres, crianças e pessoas de idade mais avançada, demonstravam ser a coisa mais natural e correta do mundo não ter vergonha de seus corpos descobertos. Lembro da emoção que sentia ao virar cada página, não havia textos, só as fotos que diziam tudo, que mostravam a pureza da felicidade daquelas pessoas livres. Imagine aquilo para mim, criado numa casa com cinco irmãs, onde nem se poderia imaginar alguém circulando com roupas de baixo, e que para ir ao banheiro tinha-se que trancar a porta.

Subitamente, a revista evaporou de minhas mãos; meu pai, que havia saído por instantes, voltara e não exitara em tomá-la de mim, escondendo-a sem deixar chance para discussões.

Aquele fora meu primeiro contato com o Naturismo. Naquele momento tomara conhecimento de que aquela filosofia de vida existia, e o quanto pareciam felizes seus adeptos. Analisando com minha visão de hoje, posso presumir que me tornei naturista naquele dia. Encontrei a revista semanas depois, procurando-a pelas gavetas de meu pai; a partir de então, passei a folheá-la freqüentemente. Ficava sonhando com o dia em que seria independente para procurar aquele local, e viver como aquelas pessoas. Infelizmente não sei hoje o fim que teria tido aquela revista editada por Luz del Fuego.

III

UM POUCO SOBRE LUZ E BEJA,

DUAS MULHERES BRASILEIRAS

Aos vinte anos de idade, a capixaba Dora Vivacqua falara de suas aspirações a sua irmã Mariquinhas:

- "Duas coisas quero realizar na vida, dar proteção aos animais e praticar o nudismo, legando isso para meus filhos[1].

Em 1947, já assinando Luz del Fuego, Dora colocou idéias naturistas na personagem principal Paula, de seu livro "Trágico Black-Out", que na verdade eram as suas próprias idéias. Também defendia um regime naturalista de alimentação, do qual era adepta. Luz não admitia qualquer alimento de origem animal, tampouco aceitava o álcool.

Três anos mais tarde, escandalizou o Brasil, publicando a autobiografia "A Verdade Nua", onde discorria sobre todas as vantagens da helioterapia e aeroterapia, exposição completa do corpo ao sol e ao ar livre. Fez imprimir no livro fotos suas, completamente nua e com suas cobras, Cornélio e Castorina. Por esta época, costumava reunir suas amigas para banhos de sol e mar ao natural, próximo a sua casa da avenida Niemeyer no Rio de Janeiro, na então deserta praia da Joatinga.

Fundou então o "Movimento Naturalista Brasileiro", que pretendia arrendar uma ilha para a prática oficial do Naturismo. Logo decidiu transformá-lo em partido político, seguindo a tradição de sua família, para tentar eleger-se deputada e legislar a favor do nudismo no país. Não logrou êxito na tentativa de registro do partido por influência de seu irmão Attilio Vivacqua, então senador, sempre tentando apagar ou minimizar os efeitos dos escândalos provocados pela irmã em sua carreira política.

Luz chegou ao ministro da Marinha, que, seduzido por seus encantos, cedeu-lhe o domínio útil sobre a ilha Tapuama de Dentro, na baía de Guanabara, sob a condição de torná-la uma área cultivável. A ilhota era na verdade tão inóspita, que era formada em mais de sessenta por cento de seu território por rochedos; tinha apenas uma árvore e não possuía água doce. Assim mesmo, Luz rebatizou-a de "Ilha do Sol", e deu início à instalação da primeira área oficial de prática do Naturismo no Brasil, segunda de toda a América Latina. A primeira fora junto ao delta do rio Tigre, na província de Buenos Aires, Argentina, hoje extinta, criada pela P.A.N.D.A.[2]

Teve todos os tipos de adversidades possíveis, mas levou em frente seu projeto, e durante quase duas décadas fez com que sua ilha se transformasse numa das grandes atrações do Rio de Janeiro, visitada por turistas e personalidades ilustres dos quatro cantos do planeta. O apogeu do Clube Naturalista Brasileiro se deu na segunda metade da década de cinqüenta, quando chegou a ter duzentos e quarenta sócios contribuintes. Afiliou-se à INF (International Naturist Federation), tendo inclusive representado o Brasil no primeiro Congresso Naturista Internacional.

A filosofia de Luz combinava Naturismo com Naturalismo. A primeira trata da naturalidade plena dos indivíduos, e tem como uma de suas manifestações a prática da nudez social em ambientes abertos, junto à natureza; a outra é uma filosofia basicamente alimentar, absolutamente vegetariana, que não aceita qualquer produto industrializado, mas que também pode adotar o nudismo, englobando neste caso a primeira.

Luz del Fuego estava certamente cinqüenta anos à frente de seu tempo; escandalizou o Brasil aparecendo nua ou seminua nos famosos bailes carnavalescos do Municipal, onde acabava sendo barrada, mas roubava a cena. Dançava nua, envolta por suas jibóias, em shows por várias partes do país, e chegou a desfilar nua por Copacabana, sentada num carrinho de sorvetes; além dos comícios que fazia, seminua, em prol do registro de seu partido político. Dividiu a população brasileira, com boa parte do Clero e senhoras da sociedade contra, homens e mulheres mais conscientes veladamente a favor.

Seguia, ainda que inconscientemente, os passos de outra brasileira que também vivera muito à frente de seu tempo, um século antes, alicerçando as bases da libertação da mulher no cenário cultural brasileiro, tradicionalmente patriarcal. Ana Jacinta de São José, nascida no Triângulo Mineiro em janeiro de 1800, logo tornou-se conhecida em toda a Corte, por sua invejável beleza e genialidade, como Dona Beja. Aos dezesseis anos de idade, obteve a reintegração do Triângulo ao território mineiro, usando sua estampa e personalidade marcantes; enquanto vivia com o Ouvidor Joaquim da Mota, que a havia mandado seqüestrar um ano antes, da casa do avô, que a criara.

De volta à São Domingos do Araxá onde havia crescido, aos dezessete anos, tornou-se logo a pessoa mais rica e poderosa do então Sertão de Farinha Podre, hoje Triângulo Mineiro. Costumava banhar-se nua, pela manhã, na Fonte da Jumenta, hoje Fonte da Beja. No local, Getúlio Vargas fez construir o elegante e imponente Grande Hotel e Cassino de Araxá, cujo cassino foi logo extinto sob o mandato de Gaspar Dutra, levando a imponente obra ao abandono.

As propriedades terápicas das águas sulfurosas do Barreiro, onde estão a fonte e o hotel, são reconhecidas internacionalmente. À época, Beja banhava diariamente o corpo, lavava os olhos, e bebia da água da fonte, passando ainda algumas horas deitada nua sobre uma toalha estendida à sombra de um tamboril centenário; para deleite de inúmeros curiosos que a espreitavam.

Conta-se que numa ocasião, Beja teria executado um protesto cavalgando nua pelas ruas em volta de seu palacete, ainda existente no centro de Araxá. Os saraus, nos salões fartamente iluminados a acetileno de sua casa, tornaram-se tradicionais. Homens poderosos e muito ricos acorriam de muito longe, atraídos por sua fama e beleza. Quando aceitos por ela, pagavam a imensa quantia de duzentos mil réis por uma simples entrevista; se aprovados, deixavam fortunas para compartilhar de seus lençóis. Isto numa época em que a prostituta mais cara da região cobrava cinco mil réis por seus favores.

Beja também viveu sob o ódio e a inveja das mulheres de sua época, mas assim como Luz, foi figura determinante para a mudança de conceitos e valores relativos à postura e importância da moderna mulher brasileira no atual contexto social de nosso país.

Diante de uma proposta de casamento, Beja uma vez respondeu:

-"Eu tenho certas razões para aborrecer o casamento. Acho que a ligação de um casal, para sempre como quer a Igreja, é bastante pesada e incompreensível. Não sou mulher para obedecer. Ninguém quer esposa para ser desobedecido. Sou moça, é verdade, mas o que tenho sofrido me fez aborrecer o casamento. Eu sou filha do sol. Gosto do vento da serra, nasci para ser livre! Gosto das águas correntes, das cachoeiras...[3]

Embora a Ilha do Sol fosse regida por um estatuto bastante rígido, muitas vezes era impossível para Luz del Fuego controlar as atitudes das centenas de pessoas que a superlotavam durante festas inesquecíveis; fazendo com que muitos boatos de permissividade se espalhassem pela imprensa, alimentando o veneno daqueles que tentavam acabar com o Naturismo. Por outro lado, Luz não deixava de ser uma prostituta de luxo, como fora Beja, e os escândalos que produzia aumentavam sensivelmente a carga de preconceitos a seu respeito, ao mesmo tempo que a faziam mais famosa.

Em cartas trocadas entre as próprias pessoas que aspiravam a difusão do Naturismo no Brasil, durante os anos sessenta[4], pode-se encontrar algumas menções preconceituosas como:

"...do modo como estamos, sem lograr estabelecer o Naturismo no Brasil, vamos terminar tendo que aderir ao Naturismo do tipo Luz del Fuego..."

A Ilha do Sol viveu seu apogeu e glória durante os anos cinqüenta, desde sua inauguração até a mudança da capital federal para o Planalto Central. A presença do Corpo Diplomático no Rio de Janeiro tinha sido fator determinante para o sucesso inicial do empreendimento de Luz, pois a alta sociedade carioca tentava imitar tudo o que os importantes estrangeiros fizessem, inclusive a prática da nudez social.

Com a saída do Corpo Diplomático da cena carioca, ela tentou de tudo no sentido de angariar fundos para a construção de melhorias que atraíssem mais sócios para o clube. Sem conseguir, vendeu seu carro e até suas jóias, chegando mesmo a fechar temporariamente, em vista de nem os sócios que tinha estarem pagando regularmente suas contribuições. Tentou apoio governamental, mas esbarrou no conservadorismo das idéias golpistas de sessenta e quatro. Alugava então a ilha aos diplomatas estrangeiros que vinham ao Rio, em busca de privacidade para receber amigos e compatriotas.

Resolveu remontar seus espetáculos em 1965 para obter dinheiro, mas já estava com quarenta e oito anos, e acabou sendo um verdadeiro fracasso. Acertou com o Bateau Mouche, de posar nua sobre uma pedra quando o barco passasse com os turistas, acenando de longe para eles. Com escassas fontes de recursos, foi vendo sua ilha se esvaziar, até ficar sozinha com seu fiel empregado e caseiro Edgar, além das visitas de seu último namorado, o guarda portuário Hélio Luís da Costa. Morreu de forma trágica e brutal dois anos mais tarde, assassinada juntamente com o velho Edgar por dois irmãos pescadores, que viviam numa ilha próxima.

Os assassinos, vinham utilizando dinamite para pescar, quando não saqueavam o produto da pesca de outros pescadores. Luz compareceu à delegacia de polícia de Neves, para registrar queixa, e tornou-se vítima da vingança dos bandidos. Tanto ela, como o velho Edgar, foram esfaqueados traiçoeiramente pelas costas; depois tiveram seus ventres abertos, foram recheados com pedras, e atirados ao mar.

Eu havia decidido que, tão logo completasse a maioridade, iria viver com ela, na Ilha do Sol; ao ser surpreendido pela notícia de seu assassinato, com menos de quinze anos de idade, jurei para mim mesmo manter meus princípios naturistas, além de lutar para que Luz del Fuego, nossa Dorinha, fosse um dia reconhecida como a madrinha do Naturismo no Brasil, se é que um dia chegássemos a ver este movimento renascer no país. Ela enfrentara, literalmente de peito nu, todos os preconceitos sociais vigentes em sua época, certamente muito mais pesados que os de hoje.

IV

O SONHO NÃO MORREU

Os anos que se seguiram, praticamente apagaram Luz del Fuego, a Ilha do Sol, e o Naturismo, da cabeça dos brasileiros. Os poucos que ainda sonhavam, trocavam cartas entre si e com Lorgus, e alguns chegavam a visitar campos de nudismo em suas idas ao velho continente. Em Porto Alegre, foi fundado o Solar Clube, de proposta naturista, mas que infelizmente também não vingou.

Em sessenta e oito, a revolução estudantil desencadeada na França chegou ao Brasil, por outros motivos, com outros métodos; mas lá estávamos nós, jovens secundaristas, sendo motivados por militantes agitadores, que nos falavam de Marx e Trotsky em seus panfletos e comícios-relâmpago, nos incitavam a bagunçar e quebrar tudo o que encontrássemos pela frente, e desapareciam como surgiam, deixando-nos a dor dos cacetetes. O que podíamos saber nós, aos quinze anos de idade, sob quatro anos de ditadura militar, sobre a "Mais Valia", ou os "Grupos de Trabalho"?

Mas nós “amávamos os Beatles e os Rolling Stones”, acreditávamos em "Paz e Amor", curtíamos Hendrix e Joplin, sonhávamos com a liberdade de Woodstock; e tudo isso nos ajudou a encontrar o caminho para fora dos conflitos político-ideológicos.

Em setenta, as "Feras do Saldanha", já sob o comando de Zagalo, levaram os noventa milhões de brasileiros de então ao delírio. O tri no México, fez o povo esquecer até seu próprio sofrimento quotidiano, e fez os militares sentirem-se ainda mais seguros no poder. Vivíamos a época da guerrilha urbana, dos seqüestros de diplomatas, dos presos e torturados políticos, uma das fases mais negras da história do país; mas o povo preferiu fingir esquecer tudo isso, para sair às ruas, de bandeira verde e amarela nas mãos, e festejar.

Treze de janeiro de 1973, nove da manhã, meu pai para o carro em frente à estação rodoviária de Porto Alegre, a mãe desce para me abraçar, sorriso de apoio forçado no rosto; o velho vira o rosto para esconder as lágrimas, lá vou eu em direção à plataforma do ônibus para o Rio de Janeiro, levando uma maleta, uma esperança, e duzentos e cinqüenta cruzeiros[5].

Nunca tinha estado no Rio antes; o ônibus entrou pela avenida Brasil quase ao meio dia de um sábado escaldante e ensolarado. A praia de Ramos fervilhava, reto em frente podia ver o Pão de Açúcar à distância, julguei tratar-se da famosa Copacabana e saudei-a em voz alta; um senhor carioca, do banco atrás do meu, retrucou:

- Copacabana o quê, meu filho! Esta nojeira é a praia de Maria Angu! - e caiu na gargalhada.

Tudo era fascínio para meus olhos. No apartamento dos primos de um amigo meu, no Bairro de Fátima, consegui pousada no quarto da empregada até que esta voltasse na manhã de segunda. Deixei minhas coisas e parti, de ônibus, para Ipanema, queria conhecer a garota do Poetinha. Lá estava o Barril; ao lado, o famosíssimo Castelinho, hoje já demolido, barzinho mais badalado do Brasil na época. Em frente, o não menos conhecido e controvertido píer de Ipanema, uma estrutura metálica que avançava uns duzentos metros para dentro do mar, durante a construção do emissário de esgotos do bairro; e que ali permaneceu por anos, servindo de trampolim de mergulhos, mas principalmente de "point" da galera.

Nas areias, próximo ao píer, não era raro encontrar figuras como Gil, Caetano, Chico, Gal, Milton e outros; cercados por amigos, em animadas reuniões musicais em plena praia, debaixo de um sol de quarenta graus.

Uma das diversões da garotada, era sacudir bem uma garrafa cheia de coca-cola, com o dedão tampando o gargalo, para passar correndo espirrando o refrigerante sobre as costas das garotas, que deitavam-se de bruços, com os corpetes soltos para evitar marcas quando desfilassem à noite, com decotes nas costas. Elas pulavam imediatamente, dando uma "avant-première" da era do "top less", de quase dez anos mais tarde, na mesma Ipanema.

À noite, ía-se para o "Bem", em São Conrado, também demolido há muitos anos, ponto bastante inflamado nas noites de finais de semana. A Barra da Tijuca praticamente não existia, não passava de um deserto árido, por onde se tinha que passar, para chegar às elegantes casas de veraneio do então distante Recreio dos Bandeirantes.

O primeiro final de semana no Rio foi muito excitante; e na manhã de segunda estava na rua, com minha maleta, os classificados do Globo de domingo, e duzentos e vinte cruzeiros. Fui direto a Botafogo, procurar a rua São Clemente, o anúncio falava de uma excelente vaga para rapaz solteiro, com telefone. Ficava numa “rua de avenida”[6], a cem metros da praia, um pouco antes de onde está hoje a estação do metrô. Da calçada em frente, via-se o Cristo Redentor, majestoso, belíssimo. Eram dois quartinhos e um banheiro, no fundo do quintal da casa de um português e sua família; cada quarto tinha três beliches e um roupeiro, e havia a extensão da linha telefônica da casa, comandada por uma chave de dentro da casa principal, cada rapaz tinha direito a três ligações locais por semana. Para quem eu poderia ligar então?

Cento e dez cruzeiros adiantados pelo primeiro mês, e só teria crédito para o segundo se trouxesse a carteira assinada. Arrumei minhas coisas na parte do armário que me cabia; minha cama seria a única livre, o andar de cima de um beliche vinte centímetros mais curto que meu corpo. Saí e tomei um ônibus para a cidade, rua do Carmo com rua da Assembléia, uma empresa paulista de engenharia pedia desenhistas técnicos. Eu tinha o curso, tirado na escola técnica, e tinha trabalhado como desenhista numa empresa de engenharia de Porto Alegre por seis meses. Apresentei os documentos, fiz uma prova escrita e outra de desenho, ganhei o emprego. Salário de setecentos e cinqüenta, mais transporte e alimentação, para trabalhar na ampliação do parque de tanques da refinaria de petróleo Duque de Caxias, da Petrobrás. Apenas um problema, o contrato iniciava em doze de fevereiro; o que significava que até o início de março, por um mês e meio, teria de sobreviver com o que tinha.

O dinheiro acabou em pouco tempo, mas deu para agüentar firme. Quando o trabalho começou, tinha ao menos os almoços de segunda a sexta. Veio o primeiro salário, e eu estava rico; mudei-me para um quarto, num apartamento de família na rua Bambina, também em Botafogo, onde até geladeira e uma pequena TV pude comprar. Um ano depois, estava promovido a projetista, e o salário era de três mil cruzeiros; aluguei um apartamento na Barata Ribeiro, em Copacabana, todinho para mim.

Em quatorze de janeiro de 1975, estava me casando com Rosimar, na igreja de Santo Antônio, em Duque de Caxias; fomos morar num belo apartamento alugado no Guarabu, Ilha do Governador, e logo compramos nosso primeiro carro, um Corcel GT 1973. Pelas vizinhanças, começamos a fazer muitas amizades com outros casais jovens como nós; promovíamos serestas memoráveis nas casas de um ou outro, todos os finais de semana. Numa destas reuniões, alguém sugeriu a idéia de acampar; todos compramos equipamentos completos, e partimos em busca da natureza.

Na própria primavera de setenta e cinco, descobrimos uma praia deserta, escondida sob um paredão rochoso da Rio-Santos, uns vinte quilômetros ao sul de Mambucaba. Tinha-se que sair à esquerda da rodovia, passar uma porteira de arame farpado, entrando por uma propriedade particular. Uns duzentos metros depois, virávamos à direita e seguíamos por uma trilha carroçável através de um bosque, até chegar às margens de um regato. Alguém havia disposto toras de madeira lado a lado no leito do mesmo, como uma ponte submersa, que permitia atravessá-lo de carro bem devagar, com a água quase cobrindo os pneus. Do outro lado, o bosque terminava abruptamente, e estávamos na areia muito fofa; para prosseguir, apenas um carro de cada vez tinha de ser empurrado por todos, por uns trezentos metros, até a desembocadura do regato, sob o paredão rochoso. Ali, montávamos nossas barracas.

Naquele local nos tornamos naturistas, oito anos depois da morte de Luz del Fuego. Só que não pensávamos nisto, apenas fazíamos o que nossos corações mandavam. Na verdade, tudo começou porque nos finais dos dias tínhamos que tirar a água salgada do corpo, e nos banharmos. Como o paredão fosse repleto de olhos d'água, cravamos calhas feitas de bambus em algumas nascentes, obtendo deliciosas duchas de água doce e pura. Por volta das cinco ou seis da tarde íamos todos para as duchas, despíamos nossos calções e biquínis, e permanecíamos ali por horas até o anoitecer, brincando nus na água doce como crianças, sem o menor traço de constrangimento, maldade, ou desrespeito ao próximo.

Freqüentemente apareciam pessoas no alto do rochedo, numa espécie de mirante, para ver o mar, e nos viam ali; tampouco dávamos a menor importância ao fato. Não me lembro de uma única vez em que tivéssemos sentado para discutir nossa nudez social, que muitas vezes já não se limitava mais àquela praia, e já acontecia também naturalmente em nossas próprias casas. Havia sim um sentimento mútuo de cumplicidade, muito difícil de tentar entender ou explicar, à época.

Hoje se sabe que, coincidentemente por aquela época, diversos outros grupos também viveram o mesmo tipo de experiências naturistas pelo país. E igualmente não buscaram explicações, nem se organizaram.

De qualquer forma, foi mesmo uma pena não se ter discutido o tema, quem sabe não teríamos fundado uma associação naturista há dezoito anos. Talvez, estarmos despidos socialmente já fosse um desafio grande demais, que havíamos superado naturalmente, e para discutir o assunto fosse necessário superar outro ainda maior.

A verdade é que não pensamos nisso, os anos foram passando, vieram os filhos, a vida foi-se tornando mais difícil, devido ao agravamento da crise econômica do país; alguns casais mudaram-se para outros estados ou países, outros divorciaram-se, como nós, e nosso paraíso foi esvaziando, como a Ilha do Sol.

Vivíamos os últimos anos da ditadura militar, e os primeiros da violenta crise inflacionária causada pelas décadas de corrupção, desmandos e captação descontrolada de empréstimos no exterior. O desemprego e a violência urbana passavam a ser a grande tônica; o país que parecera despontar no decadente cenário mundial do pós guerra, mais de trinta anos antes, e vivera um relativo esplendor durante as décadas de cinqüenta e sessenta, estava transformado num caos político, social e econômico.

Em 1984, dez anos antes de hoje, quando escrevo estas reminiscências, encontrei nas bancas um exemplar da revista Manchete, com chamada de capa para uma reportagem assinada por Tarlis Batista, sobre o que descreviam como a primeira e única praia de nudismo brasileira; comprei a revista e li, era sobre a Praia do Pinho, em Balneário Camboriú, Santa Catarina. A capa mostrava duas mulheres nuas, em cadeiras de praia, e a reportagem falava sobre a decisão do prefeito e do secretário de turismo, de legalizar a área.

Durante anos, julguei tratar-se de matéria sensacionalista, ainda mais por que o texto dizia que o dono de um cabaré local levava suas meninas a queimarem-se sem marcas na praia de difícil acesso. Lembrei de nossa praia na Rio-Santos, que havia perdido sua condição de liberdade pela chegada de mais pessoas, além da especulação imobiliária, que logo tomou conta do belo local. Imaginei que o mesmo pudesse acontecer à praia catarinense, guardei a revista e esqueci o assunto, esperando intimamente encontrar alguma outra matéria posteriormente, que viesse confirmar a legalização do local.

Dez anos depois de nossos últimos banhos nas duchas naturais da praia escondida, abandonei o trabalho em engenharia, após concluir o projeto de toda a iluminação da usina hidrelétrica de Tucuruí. Comprei um velho boteco que servia boa comida e bebidas, além de um sensacional caldo verde, na ex-boêmia área da Lapa, então infestada de bicheiros, traficantes, prostitutas, travestis e ladrões. Tinha um ótimo sócio, conseguimos juntos transformar o boteco num lugar freqüentável, que vivia cheio de gente que vinha da Tijuca e de Copacabana.

Poucos meses depois, não foi possível resistir à tentadora oferta que um grupo de empresários portugueses nos fez, vendemos o ponto e desfizemos a sociedade; não queria passar o resto de meus dias escravo de outro negócio como aquele, que tomava todo o tempo e todos os dias, mesmo os sábados, domingos e feriados.

Arrumei uma mochila e tomei o primeiro avião para a velha Europa. Desembarquei em Lisboa, e passei os sessenta dias seguintes rodando de trem por inúmeros países em pleno verão, julho e agosto.

Segui para Frankfurt via Paris, para visitar uma amiga, Alice, que estava vivendo por lá. No trem, a primeira surpresa, eu viajava numa cabine de primeira classe, compartilhada com uma família portuguesa. Era um comerciante de Lisboa, Manoel, homem de quarenta e poucos anos de idade, acompanhado pela mulher, Ana, talvez uns seis ou sete anos mais moça, e três filhos. A mais velha era Rita, com quatorze anos; mais os meninos André, de treze, e Diogo, com doze anos de idade.

O casal era encantador, mostraram-se logo amistosos, eram finos e bonitos, com os filhos muito bem educados; o que me chamou a atenção. Chegaríamos a Paris no meio da tarde seguinte. Ao passar das vinte e duas horas, decidiram que já era hora de dormir, Ana abriu uma bolsa, tirando dela roupas de dormir para toda a família.

Todos se trocaram ali mesmo, uns diante dos outros, e de mim, um perfeito estranho. Ana acomodou Diogo e Rita no leito a meu lado, e André na bandeja de bagagens, que serviu de beliche[7], saindo depois para o toalete. Ao regressar à cabine, conversando naturalmente com o marido, despiu-se para vestir uma camisola, antes de desejar boa noite a todos e apagar a luz para que dormíssemos. Era minha primeira experiência naturista em dez anos; apaixonei-me pela família, que visitei em Lisboa dois meses depois, antes de regressar ao Brasil.

Fiz conexão em Paris para Frankfurt, onde a segunda surpresa me esperava. Como fizesse muito calor e Alice tivesse as manhãs livres, passei a acompanhá-la diariamente a uma piscina pública. Lá, além de muitas mulheres, quase todas, não cobrirem os seios, havia pessoas, homens e mulheres, que pareciam estar passando pelas proximidades do clube quando decidiam entrar para refrescar-se. Isto porque chegavam vestidos e despiam-se até ficar apenas com as roupas de baixo, para mergulhar e tomar sol.

Depois voltei a Paris, para passar alguns dias. Na mesma Gare du Nord, onde desembarquei, havia um guichê que informava e reservava acomodações por toda a França. Optei por um "Centre de Séjours", uma espécie de hotel de estudantes, situado junto à Mairie de Clichi, a prefeitura de uma das cidades satélites da "Cidade Luz".

A diária era de trinta francos, com direito a café da manhã, na verdade uma caneca de café com leite, acompanhada de um naco de "baguette" com manteiga. O funcionário do guichê ligou, fazendo a reserva em meu nome, em seguida, forneceu-me um mapa completo do sistema de metrô, indicando as linhas que deveria tomar, e as estações de conexão.

Cheguei ao "Centre de Séjours Lèo Légrange" já bem tarde, por volta das vinte e três horas, registrei-me e recebi a chave de um quarto no sétimo andar. Subi com minha mochila; ao deixar o elevador vi um corredor comprido em frente, com as portas dos quartos. Logo na entrada, ainda no patamar dos elevadores, havia uma porta dupla de molas, encimada pelo anúncio: "salle de bain".

Empurrei uma das folhas da porta e espiei para dentro; na parede contígua à direita da entrada, havia umas oito pias, com espelhos. Na parede seguinte, uma bateria de aparelhos mictórios; do lado oposto à entrada, estavam os chuveiros, dispostos lado a lado, sem divisórias; e, do lado esquerdo, os pequenos reservados com vasos sanitários.

Estava bem claro para mim, que se tratava do banheiro masculino, o feminino talvez estivesse na outra extremidade do corredor. Segui para o quarto indicado e entrei; logo junto à porta havia uma pia e espelho, adiante os armários, e depois o quarto propriamente dito, com um beliche e uma cama de solteiro. Ao fundo, uma comprida escrivaninha, ocupava toda a extensão da parede da janela, então totalmente aberta, emoldurando uma bela visão da torre Eiffel iluminada. Fui imediatamente saudado por meus companheiros de quarto, que ainda estavam acordados; na parte inferior do beliche, já estava deitado um rapaz brasileiro, a cama de solteiro era ocupada por um jovem americano. Conversamos um pouco, mas logo tratamos de dormir.

Saltei cedo da cama, despi a bermuda e a camiseta com as quais dormira, enrolando minha toalha à cintura, como um sarongue, e saí em silêncio para não acordar os outros, levando meu "necessaire". Ao entrar no banheiro ainda vazio, coloquei o "necessaire" sobre a bancada das pias, despi a toalha, indo pendurá-la num dos ganchos junto às duchas. Estava louco para urinar, dirigi-me a um dos mictórios e tive dificuldades para apontar o jato para dentro do mesmo, o que é normal quando se está meio sonolento. Neste momento ouvi o ranger da mola da porta de entrada atrás de mim, mas nem liguei, ocupado que estava em não urinar na parede. Uma doce voz de menina, em indefectível sotaque francês, despertou-me definitivamente, soando animada:

- "Bon jour!"

O piso desapareceu de sob meus pés; antes de conseguir estancar o fluxo e olhar para a moça, tive a impressão de ter cometido um terrível engano e estar atentando ao pudor, completamente nu, urinando no banheiro feminino, em frente a uma jovem e inocente hóspede. Apenas a presença dos aparelhos mictórios não fazia sentido, mas devo ter ficado da cor dos alvos azulejos. Virei-me, tentando disfarçar o volume do membro ainda entumecido sob as mãos, para alcançar a toalha e dar o fora; neste momento vi a menina. Ela deveria ter no máximo dezessete anos, e já estava tão nua quanto eu próprio; também tinha deixado suas coisas na bancada das pias, e estava abrindo a válvula de uma das duchas, sob a qual se meteu cantarolando.

Começamos a conversar, meu susto foi passando, completei meu alívio e fui juntar-me a ela, sob as duchas. Logo, outros jovens de ambos os sexos foram entrando e utilizando o banheiro sem preconceitos, no mais absoluto clima de respeito e naturalidade. Posso dizer hoje, que quase atingi o nirvana naqueles momentos; ali estava o menino que havia sonhado com o Naturismo por mais de vinte anos, tornando a experimentá-lo.

Depois, foi em Estocolmo, semanas depois; estava namorando uma jovem norueguesa que conhecera num trem vindo de Copenhague. Era uma manhã de sábado muito quente, estávamos passeando, eu e Bennie, por uma espécie de parque alongado, na margem norte do canal Djurgardsbrunnsviken, parte leste da cidade, bem em frente à ilha Skansen. Estocolmo é apelidada de "Veneza do Norte", por seus canais, que cortam toda a cidade. Infelizmente, por ser uma das maiores cidades industriais do mundo, registrava altos índices de poluição nestes canais.

A prefeitura havia completado as obras de despoluição daquele canal, e o prefeito havia escolhido aquela ensolarada manhã para a cerimônia oficial de inauguração. Os termômetros de rua, em Estocolmo, têm escala entre trinta graus negativos e trinta positivos; era quase meio dia, e eles marcavam vinte e sete. Havia um palanque montado na margem, avançando como um píer sobre o canal; o talude gramado que circunda o local começou a encher-se de gente, homens, mulheres e crianças. Vendedores de bolas de gás multicoloridas, sorvetes e algodão doce, circulavam entre as pessoas que chegavam de todos os lados.

Funcionários de estações de TV montavam câmeras sobre gruas, e havia repórteres espalhados, colhendo impressões do povo. Pelas onze e trinta, a cerimônia começou, o palanque estava cheio de figurões metidos em ternos com gravatas, sob aquele calor escaldante; havia também mulheres exuberantemente vestidas. O povo se comprimia no gramado, sem perder palavra dos discursos, que Bennie se esforçava para traduzir como podia.

Lá pelas tantas, depois de algumas palavras mais veementes, estrepitosamente ovacionadas pela multidão, que Bennie não teve tempo de traduzir, o prefeito desmanchou o nó da gravata, tirou o paletó, a camisa, os sapatos e meias, as calças e cueca. Nu como veio ao mundo, subiu ao beiral do palanque, onde desatou uma fita azul e amarela, e mergulhou para nadar no canal.

O mais incrível ainda, é que a imensa maioria das pessoas presentes, quase excetuando-se apenas policiais, vendedores ambulantes e pessoal da imprensa, do palanque e da assistência, fizeram exatamente o mesmo. Todos os que se despiram e simplesmente deixaram suas roupas e pertences onde estiveram, correram para a água, nadaram por algum tempo e depois vieram confraternizar-se ao sol, secando-se para poder tornar a vestir-se e seguir seus caminhos felizes. Bennie manteve sua calcinha, explicando-me que os noruegueses são um pouco mais conservadores.

As piscinas públicas de Estocolmo, costumam ter áreas específicas para o nudismo, mas a bem da verdade, as pessoas nem ligam para a nudez própria ou alheia nas demais áreas comuns. No centro da cidade, é comum durante o verão, que as pessoas deixem seus escritórios ao meio dia, para despir-se ao sol no parque de Mariebergs, um quilômetro a oeste da prefeitura, regressando ao trabalho pouco antes das duas.

Nos gramados do parque público, deitam-se nus, e comem os lanches que trazem, geralmente frutas.

Numa ocasião, eu e Bennie fazíamos exatamente isto, apesar de ela, como sempre, manter a calcinha. Uma velha e elegante senhora, trajada como se fosse a uma festa, aproximou-se e falou algumas palavras sorrindo docemente, antes de despedir-se e prosseguir seu caminho pela promenade sobre a grama. Bennie traduziu suas palavras assim:

- Como é linda a juventude! Quisera ter hoje uns quarenta anos a menos. Divirtam-se!

Os dinamarqueses também não são tão liberais quanto os suecos; contudo, nenhuma mulher dinamarquesa é jamais estimulada a ter vergonha de seus seios e escondê-los. Nas piscinas públicas, todas, quase sem exceção, os exibem sem qualquer preocupação ética ou estética aparentes. Mesmo as que preferem ir às piscinas usando maiôs de corpo inteiro, assim que estão ao sol, soltam as alças e os enrolam até o ventre, ficando à vontade.

Depois disso, passei uma semana acampado na ilha de Corfú, na Grécia, e fiz um cruzeiro turístico pelas ilhas do sul, dá para imaginar que lá pude coroar de êxito meu reencontro com o Naturismo.

De volta ao Brasil, depois de literalmente gastar tudo o que possuía, precisei de emprego, e fui procurá-lo na área do turismo. Por conselho de uma amiga, procurei a Soletur, onde tive a oportunidade de realizar um curso completo de guia turístico. Depois de um ano viajando pela América do Sul, tornei-me guia intercontinental.

Meu pai dizia que eu era um "Cidadão do Mundo"; já estava chegando aos quarenta, e conhecia boa parte do planeta. Aprendera muito sobre costumes e tradições de vários povos, de países em geral mais avançados social e culturalmente que o nosso Brasil. Aprendi alguns dos seus idiomas e muito de suas histórias; pude concluir que os conceitos e padrões sociais são inerentes a cada povo, podendo diferir totalmente em grupos sociais distintos, ou até mesmo, e muito comumente, em diferentes épocas dentro do mesmo grupo. Imagine, por exemplo, Luz del Fuego hoje, com vinte anos de idade, vivendo no Rio de Janeiro.

O que um determinado grupo social, em uma determinada época, considere corretíssimo, pode chegar a ser considerado crime por outro grupo, ou em outra época. Temos o exemplo da inauguração simbólica da despoluição do canal em Estocolmo; o próprio prefeito teria sido condenado por incitar a população ao atentado ao pudor público, se fosse às margens do Tietê, em São Paulo, segundo a legislação brasileira.

Felizes as pessoas que não se curvam a preconceitos, que experimentam verdadeiramente a graça de viver, agindo segundo suas próprias consciências; como Dora e Ana Jacinta viveram. Lástima que a maior parte de nós ache isso impossível, e morra frustrada sem nunca na verdade vivenciar suas próprias experiências.

No verão de 1992, assustado por alguns acontecimentos, decidi deixar o Rio. Primeiro tive meu apartamento, na Tijuca, visitado por quatro rapazes muito bem educados, além de delicados, que foram dar-me bom dia com carinhosos socos, coronhadas e fios de faca na pele; antes de promoverem a faxina, aliviando minha casa de tanta tralha desnecessária, que havia apenas custado o suor de alguns anos de trabalho decente. E se discutem os direitos humanos. Tudo isso com a luz do sol entrando pelas janelas, num prédio de mais de quarenta apartamentos; sem que ninguém visse, ou mesmo se importasse com o acontecido.

Depois foi a vez do meu carro, roubado num assalto em Jacarepaguá das mãos de um casal de amigos, que só não morreram por milagre, pois foram tirados dele a tiros, que estouraram um vidro e perfuraram a carroceria.

Que mundo é este? Porque os cariocas, abençoados e agraciados pelo cenário natural mais lindo do mundo, povo tão alegre, hospitaleiro, trabalhador, e de espírito gaiato por tradição, tem que "pagar este mico"?

Arrumei as trouxas, desta vez um pouco mais do que vinte anos antes, e vim de muda para Porto Alegre. Vim ficar junto de minha família, perto de meu pai, cuja saúde já estava bastante debilitada; e curtir esta terra, longe de um lugar ideal, mas onde a violência ainda engatinhava na época.

Na verdade, chegara de viagem do exterior, e recebera a notícia de que meu pai não estava bem; vim vê-lo, felizmente já o encontrando em franca recuperação, mas me apaixonei pela cidade. Qualquer pessoa que dedicar-se a visitar Porto Alegre durante os oito meses quentes, que englobam a primavera, o verão e a maior parte do outono, se gostar de flores, de cidade limpa e povo feliz, também vai apaixonar-se pela qualidade de vida que ela possui.

Em setembro, são as azaléias que enfeitam os jardins; em outubro e novembro, é a vez dos jacarandás darem seu show, cobrindo sessenta por cento das calçadas da cidade, com sua constante chuva de pequenas flores lilases; então chega o verão, capitaneado pelos ipês cobertos de ouro, e todas as demais flores, como as hortênsias dos jardins residenciais. Para fechar a temporada, em março e abril, a cor rosa claro cobre as gigantescas paineiras, por toda a cidade.

E foi isso, o multicolorido verão porto-alegrense tocou meu coração de tal forma que, um mês depois, em fevereiro, minha mudança estava chegando.

Foi na casa de meus pais, folheando o jornal Zero Hora, que uma pequena nota, quase no rodapé de uma página, chamou minha atenção. O título dizia: "Nudistas ganham revista especializada". E a nota falava sobre o lançamento da revista Naturis, de circulação bimensal, que chegaria às bancas nos próximos dias, contando tudo sobre o movimento naturista no Brasil. Era a notícia que eu havia esperado por quase oito anos, desde a reportagem de Tarlis Batista, na Manchete de 1984. Passei a perguntar de banca em banca diariamente, até encontrar o número 1. Foi a melhor surpresa de toda a minha vida naturista, desde a revista editada por Luz del Fuego, que encontrara na casa do tio Jorge. Era melhor mesmo que ter mergulhado nu, com o prefeito e centenas de pessoas em Estocolmo, ou que nossa praia escondida na Rio-Santos, melhor que tudo.

Ali estavam as fotos de duas praias oficiais de Naturismo no Brasil, Tambaba, no estado da Paraíba, e a já falada praia do Pinho, a revista falava ainda de um grande projeto naturista para Pedras Altas, mais ao sul, também em Santa Catarina, e da Federação Brasileira de Naturismo, oficialmente afiliada à INF, tendo inclusive representado o país no último congresso internacional, na Flórida.

Era tudo o que eu precisava saber, o sonho de Luz del Fuego ainda estava vivo, nosso Brasil já tinha Naturismo devidamente legalizado, e conquistando mais e mais adeptos. Pessoas evoluídas haviam rompido as barreiras dos preconceitos e tradições religiosas, assumindo seu direito à felicidade e à liberdade de conviver nus socialmente, expondo toda a sua pele e genitalha à helioterapia e à aeroterapia; dando início ao processo que certamente levará o ser humano ao auto-conhecimento e à autenticidade plenos, à identificação de nossos verdadeiros ideais.

Dois meses depois, adquiri o número 2 da revista, e comecei a programar minha ida ao Pinho para o verão seguinte; marquei minhas férias para fevereiro, quase um ano depois, não muito para quem já esperara tanto. Os meses foram passando, e nunca mais encontrei outro número da revista nas bancas, um jornaleiro chegou a dizer-me que não estava mais sendo editada; lastimei, mas nunca alterei meus planos.

O verão levou o triplo do tempo normal para chegar naquele ano; no início da primavera eu já contava os dias, e imaginava como seria no Pinho.

Desde menino, tive grande afinidade com pincéis e tintas; freqüentei a escolinha do Instituto de Belas Artes até a adolescência e muitas vezes executei um ou outro trabalho de arte, despretensiosamente, a título de passatempo. Em Paris, fui convidado por uma amiga brasileira a faturar alguns francos, posando numa escola de artes; topei, e durante três dias, passamos quase dez horas por dia posando nus pelos estúdios da escola. Entre uma pose e outra, descobrimos que havia um artista americano ministrando um curso de pintura corporal para alunos da escola. Forneciam-nos uns robes de tecido, amarrados à frente, para circularmos; vestidos assim, tínhamos acesso a qualquer estúdio. Convenci minha amiga Cristina, a passar nossas folgas assistindo às aulas do americano. À noite, quando ela voltava da universidade, praticava pintando-a.

De volta ao Brasil, experimentei fazer alguns trabalhos, contando com a paciência e boa vontade de uma ou outra amiga voluntárias, que sempre terminavam muito felizes com os resultados.

Há basicamente duas técnicas diferentes de "body-painting", uma delas utiliza uma espécie de maquiagem, o "pancake", que é muito comum em palhaços, para apresentar-se no picadeiro; não é tóxica, e tem como grande vantagem a durabilidade do trabalho, uma vez que não seja quebradiça, e seja resistente ao suor do corpo.

A outra técnica, utiliza a tinta acrílica aplicada com pincéis; é bem mais bonita, por seu brilho. Não é tóxica, pois não reage com a pele, permitindo uma cobertura de setenta por cento do corpo por um período de até seis horas, sem problemas para a respiração dos poros. Esta técnica, porém, tem baixíssima durabilidade, pois depois de seco, o acrílico torna-se quebradiço.

De qualquer forma, como a maioria dos "body-painters" naturistas do mundo, adaptei-me melhor ao acrílico, pela terapia do toque dos pincéis, e pelas cores mais vivas. Quanto à baixa durabilidade, encaixa-se bem aos objetivos de uma praia de Naturismo, onde o mais importante é expor toda a pele ao sol; por isso, terminada a pintura, ela dura o tempo necessário para ser eternizada pela fotografia, porquanto seja efêmera, e para desfilar a vaidade feminina enfeitada, podendo ser removida em seguida.

Imaginei-me pintando na praia do Pinho, como já havia visto artistas fazendo em outras partes do mundo.

Muitos perguntariam: "Porque somente corpos femininos?" A resposta seria bastante simples: A inspiração do artista é o gosto que ele tem pelas cores, texturas, aparências, aromas, formas, sons, ou significados do que ele esteja criando; o artista ama sua criação porquanto sua, fruto da própria imaginação. Não me vejo adorando qualquer coisa sobre o corpo de um congênere; nem encontrando inspiração alguma sobre um. Trata-se de um ponto de vista bastante pessoal e indiscutível, que pode mesmo ser compartilhado por muitos; assim como contestado por outros.

A psicanálise pode mesmo explicar as contestações pelo princípio da transferência; ou seja, ao ver-me pintando sobre um corpo feminino, alguém poderia imaginar o que ele mesmo estaria experimentando, se estivesse no meu lugar. Só que não é ele quem está pintando, sou eu, uma pessoa verticalmente diferente dele próprio; totalmente imerso em meu universo de criação, sentindo apenas o meu trabalho e o prazer que ele me dá.

Pensando assim, decidi levar minha maleta de pintura ao Pinho, pois a pintura corporal é uma marca registrada do Naturismo, no mundo todo e desde o início dos tempos, haja visto os índios, que pintam o corpo para enfeitar-se para festas, demonstrar tristeza em funerais, e agressividade nas guerras. Desfilar uma criação artística sobre a própria pele, é certamente uma manifestação genuinamente naturista.

O ano de 1993, surgiu em meio às águas que ensoparam as comemorações de ano novo por todo o sul do Brasil; também choveu muito por todo o mês de janeiro, fazendo-me crer que tinha feito uma excelente opção por fevereiro para minhas férias. A contagem regressiva estava terminando, aproximava-se o dia esperado por trinta anos, de me tornar "naturista de carteirinha", de assumir publica e socialmente minha condição de propagador do Naturismo, não mais de um eventual participante, na maior parte das vezes colhido de surpresa, como fora por toda a vida.

Poucos dias antes de ir, alguma coisa me dizia que seria prudente tomar algumas precauções; reli os dois números da revista Naturis, neles encontrando a indicação de um telefone de contato, para informações. Liguei, e acabei passando quase uma hora e meia conversando com a Rose, de Florianópolis, uma das primeiras pessoas a pegar sol em toda a pele na praia do Pinho. Ela e o marido Edo, têm uma casa em Balneário Camboriú, onde costumam passar boa parte de seu tempo livre; há mais de quinze anos, os dois percorreram toda a costa, nas proximidades do Balneário, à procura de uma praia onde pudessem curtir o sol, a brisa e o mar ao natural. Acabaram chegando à prainha que fica entre o morro da Tartaruga, atual localização do Paraíso da Tartaruga, sede da AAPP, Associação dos Amigos da Praia do Pinho, e a praia do Pinho, propriamente dita. Esta prainha está separada do Pinho, por um pequeno conjunto de rochedos, e é sazonal; ou seja, o mar traz e deposita a areia sobre as pedras, formando-a, mas alguns meses depois, alguma grande ressaca leva-a por inteiro.

Ali, Rose e Edo curtiam o sol e o mar a sós; até que resolveram subir as pedras do sul da prainha, para ver o que havia daquele lado. Para surpresa dos dois, depararam com uma belíssima praia de enseada, de uns duzentos metros de extensão, que terminava ao sul, abruptamente, nos grandes rochedos que a separam do Estaleiro. A praia estava deserta, não havia caminho de acesso visível, os dois então correram nus e felizes pelas areias perenes e macias da praia do Pinho. Em outras vezes que voltaram, foram encontrando algumas outras pessoas, que vinham ali fazer o mesmo que eles, gozar a liberdade sem censura, como na música de Roberto Carlos: "...bronzear o corpo todo sem censura; gozar a liberdade de uma vida sem frescura..." E foram fazendo amizades, enquanto o grupo crescia.

Descobriram um novo caminho, que era utilizado pelos outros, por cima da própria praia; só que ainda tinham que deixar os carros lá em cima, na estrada das praias, que liga Estaleirinho, Estaleiro, Pinho, Taquaras, Taquarinha e Laranjeiras; as praias do sul do município de Balneário Camboriú. Prosseguiam a pé, como acontece hoje com a praia do Olho de Boi, em Búzios, administrada pela RIO NAT, também reconhecida pela FBN, Federação Brasileira de Naturismo.

Amargaram também alguns ataques dos empregados do proprietário do terreno, Domingos Fonseca, que no início, espantados pela invasão daquela gente nua, atravessando as terras que cuidavam, tentaram rechaçá-las a paus e pedras. Com o tempo, o próprio seu Domingos veio ter com os nudistas, acabando por simpatizar com aquela gente que só queria um pouco de paz e liberdade. Depois, atraídos pela possibilidade de ganhar a vida vivendo num paraíso, devido à constante presença dos naturistas, uma das filhas de seu Domingos, Yvonete, com seu marido Álvaro, cansado dos percalços de sua profissão de caminhoneiro, resolveram fixar-se no local, e assumir um restaurante, construído em frente à atual entrada da praia.

Abriu-se um caminho que permitia descer da estrada das praias, com o carro, até a praia do Pinho. No princípio, como em todos os princípios, as coisas não foram nada fáceis para os dois; viviam lá isolados do mundo, os naturistas não apareciam durante os invernos, as estradas de acesso tornavam-se caóticas toda a vez que chovia. Mesmo assim, os dois perseveraram e tiveram a idéia, apoiados pelos freqüentadores, de construir estrutura para camping.

Outro grande batalhador pela liberdade do Pinho, desde aquela época, era Elmo, artista plástico nativo da região, que costumava vir à praia com a esposa. O grupo de naturistas assíduos, a maior parte, gente que vivia nas redondezas, de Florianópolis a Joinville, continuava aumentando; a reportagem de Tarlis Batista, em oitenta e quatro, era mesmo expressão da verdade, o Pinho existia.

Em 1985, outro nome que estará para sempre ligado à história do Naturismo no Brasil, chegou ao Pinho quase por acaso, como descreve em seu livro "Naturismo - A Redescoberta do Homem"[8], era Celso Rossi, de Porto Alegre, fundador, e atual presidente da FBN, que já representou o Naturismo brasileiro em dois congressos internacionais, o de 1992, na Flórida, e o de 1994, na Áustria.

Desde cedo, os primeiros freqüentadores do Pinho aprenderam que tinham que se proteger de curiosos inconvenientes e até de opositores violentos. Atitudes fora da conduta ética naturista tinham de ser coibidas, pessoas novas que chegassem e aderissem à filosofia, tinham de ser orientadas, e a segurança da praia precisava ser mantida. Um torneiro mecânico de Balneário Camboriú, de origem alemã, Siegfried Heyder, o Zig, tornou-se logo o maior guardião da praia. Em atitude quase policialesca, apesar do modo simpático, Zig circula pela praia diariamente, até hoje, observando a conduta dos presentes e evitando problemas. Na recepção das pessoas que chegavam apenas para ver de perto, ou ainda para participar, despontou a própria Rose, Roselandi E. Moennich, a quem considero minha madrinha no Naturismo brasileiro, pelo carinho da acolhida e clareza das orientações, quando de meu telefonema.

Na tarde do dia treze de janeiro de 1986, porém, a polícia invadiu a praia do Pinho, levando presas mais de vinte pessoas que gozavam as delícias da mesma, numa operação conjunta, sob o comando do então Secretário de Segurança Pública, Heitor Luiz Sché. Dois dias mais tarde, indignado pela atitude policial, o Jornal de Santa Catarina, de maior circulação no estado, estampava em manchete: "NUDISTAS PRESOS, ASSALTOS CONTINUAM", sobre uma matéria onde o então já ex-Secretário de Turismo de Balneário Camboriú, citado na matéria de Tarlis Batista, de dois anos antes, como grande incentivador da oficialização da praia para o Naturismo, Osmar Nunes Filho, demonstrava todo o seu repúdio ao lamentável episódio.

Logo depois da ação policial, e da interdição oficial da praia, o que vinha inclusive destruir as aspirações e o trabalho de quase dois anos, de Álvaro e Yvonete; Rose e Edo chegaram à praia, encontrando-os inconsoláveis, com sua casa lacrada pela justiça. Sem pensar duas vezes, Rose despiu-se e foi para a praia, decidida a enfrentar quem quer que fosse. Não tardou a aparecer uma viatura da Polícia Militar, para patrulhar a área, mas ela não se intimidou diante dos policiais, que terminaram indo embora sem levá-la.

A coragem de Rose, manteve acesa a chama da liberdade do Naturismo no Brasil. Em pouco tempo, a polícia deixaria de incomodar os naturistas, e passaria mesmo a protegê-los, como ocorre hoje, em que todos os dias uma viatura desce ao Pinho para certificar-se de que tudo esteja bem.

No mês de fevereiro daquele mesmo ano, Celso Rossi fundou a Associação dos Amigos da Praia do Pinho, AAPP, durante uma festa de carnaval, no interior do restaurante da praia. Logo teriam um estatuto, e mais tarde um código de ética naturista, que rege até hoje o comportamento na praia.

Em janeiro de 1988, Celso largou tudo o que tinha em Porto Alegre, emprego nas empresas da família, apartamento, amigos, e foi de mudança para o Pinho, onde acampou. Por esta época, Álvaro havia pavimentado a estradinha de acesso à praia, e construído um tosco bar na areia, sob um telhado que seu Domingos havia feito construir para garantir um pouco de sombra aos banhistas, nas horas de sol mais quente. Outro filho deste, irmão de Yvonete, o Yvan, também construíra um bar na areia, um pouco mais ao sul, bem mais sofisticado, com salão de jogos e cancha de bocha, para abrir apenas nas temporadas de verão.

Naquele mesmo mês, Celso fundou ainda, a Federação Brasileira de Naturismo, FBN, para oficializar a existência definitiva do Naturismo no Brasil e afiliar-se à INF, como nossa Luz del Fuego já fizera. No mês de agosto, foi procurado pelo Comendador Aloísio Camargo de Araújo, que desejava oferecer-lhe suas terras, no morro da Tartaruga, ao lado da praia do Pinho, imensa área de mata atlântica virgem. Patrãozinho, como é conhecido o comendador Aloísio, e seu irmão Antônio, firmaram com Celso, um acordo de comodato para o uso das terras pela FBN e AAPP.

Por aquela época, tinha-se que praticamente escalar o costão rochoso, para chegar-se ao local, vindo da praia. Celso, Elmo, Zig e outros, decidiram construir lá estrutura para a instalação das sedes das duas agremiações; arregaçaram as mangas e foram à luta. Em poucos meses, ergueram os prédios que hoje compõem o Paraíso da Tartaruga.

"Em fevereiro de 1988, a Voz do Brasil anunciava em cadeia nacional o reconhecimento do estatuto da Associação de Amigos da Praia do Pinho. Acabava de nascer a primeira praia oficial de nudismo do país”[9].

Durante a realização do Primeiro Encontro Naturista Rio / São Paulo, na Fazenda Rincão em Guaratinguetá, SP, a 26 de novembro de 1994, Sérgio de Oliveira, vice-presidente da FBN, saudou a presença de Luciano Canabrava no evento, citando-o como uma das pessoas que teriam escrito a história do Naturismo no Brasil. Luciano já tinha quase setenta anos, aparentemente muito bem vividos, a julgar pela rigidez do corpo bronzeado sem marcas, com a musculatura de um nadador inveterado, e pelo dinamismo e simplicidade de atitudes, apesar de toda a cultura que amealhara em inúmeras viagens ao redor do mundo.

Convidado a tomar a palavra, Luciano começou:

-"Vocês, jovens batalhadores, como Celso Rossi, Sérgio de Oliveira, Alexandre Tsanaclis e tantos outros, responsáveis pela oficialização e incremento do Naturismo no Brasil, é que escrevem sua história. Eu, Luz del Fuego, e tantos outros, escrevemos apenas a pré-história do movimento."...

Luciano Canabrava tinha freqüentado a ilha do Sol, tendo se tornado amigo de Luz. E teve quase o mesmo fim que ela; duas semanas depois do evento de Guaratinguetá, em 12 de dezembro, foi seqüestrado no sítio Norderney, próximo a Brasília. Os seqüestradores fizeram contato com a família, exigindo o resgate, mas a polícia já havia encontrado seu corpo.

O sítio estava em obras para tornar-se uma pousada naturista, que seria inaugurada em abril de 1995; agora existe a idéia de seus herdeiros, de levar adiante o projeto, completando-o como uma homenagem póstuma.

Transcrevo aqui, uma carta dele, endereçada a Sérgio de Oliveira, divulgada pela Rio-Nat:

"Meu caro Sérgio,

Recebi a carta em que você, entre outras coisas, faz uma referência à citação de meu nome na introdução ao roteiro escrito pelo Aguinaldo Silva sobre a Luz del Fuego. Já tive esse livro; emprestei-o, não sei mais para quem. Gostaria de adquirir um novo exemplar.

Você também me diz que está reunindo material sobre ela. O que eu tenho, de concreto, são duas fotos, tiradas na ilha do Sol, mais uma carta. Desta mando-lhe aqui anexa uma xerox. Das fotos, que no original são a cores, mando-lhe ampliações em preto e branco. Além disso, tenho muitas lembranças, inclusive a de uma longa conversa sobre sua vida. Ela tinha um álbum de fotografias, que ia folheando enquanto me contava sua história. As primeiras fotos mostravam uma jovem muito bonita, do tipo que a gente costuma chamar de violão. A Luz que eu conheci pessoalmente tinha seus cinqüenta e tantos anos e as fotos que eu agora lhe mando, já na ocasião não eram recentes.

Como conheci a Luz? Estava de passeio no Rio, em férias, e certo dia resolvi repetir uma experiência, que vez por outra realizava quando muito jovem: sair sem rumo predeterminado, pegar a primeira condução, fosse qual fosse, e assim por diante. Era sempre um passeio com sabor de aventura. Foi assim que acabei pegando um bonde que levava para as barcas. A primeira ia para Paquetá. E lá fui eu.

Parei no Hotel Fragata para almoçar. Lá de perto vê-se uma pequena ilha. Informaram-me que era a ilha do Sol, da Luz del Fuego. Calculei uns dois mil metros de distância - na verdade era mais longe. Era bom nadador, e a primeira idéia foi nadar até lá, mas já que acabara de almoçar, achei mais prudente alugar uma canoa, com remador e tudo. A Luz não estava - informou um empregado - e não permitia que ninguém ficasse na ilha sem autorização dela. Se eu quizesse, que voltasse no dia seguinte, quando então a encontraria.

Hospedei-me no Hotel Fragata e na manhã seguinte fui de novo à ilha. Fui recebido por um senhor muito branco que parecia nunca tomar sol. Era o Hélio, o namorado da Luz. Despi-me e ele me levou até ela. Morena, pele curtida pelo sol, cabelos pretos longos caindo sobre os ombros. Sob os seios as cicatrizes de uma plástica que evidentemente não fora feita pelo Pitanguy. A presença de um estranho não foi saudada com alegria. Eu era um desconhecido e tudo o que ouvi foram desculpas polidas por não poder me receber como hóspede; não havia lugar, não havia cama...

Mas eu estava determinado. Ficara encantado com a ilhota: as pedras, as pitangueiras, as águas límpidas em torno... Disse que poderia dormir em qualquer lugar, até na cozinha. Cama? Eu compraria uma de armar.

Dei informações a meu respeito, o que fazia, onde trabalhava e eles ficaram de dar-me uma resposta. No dia seguinte o Hélio procurou-me no Hotel Fragata. Sua atitude, antes de reserva, era toda cordialidade. De repente senti-me "persona grata". Fechei minha conta no hotel, comprei uma cama de armar e fui com o Hélio para a ilha do Sol. A reserva também desaparecera da atitude de Luz. Estava, agora, alegre por me ver. Levou-me para mostrar a ilha. Além do prédio da cozinha, havia mais duas construções: uma de maior tamanho, ainda em obras, e outra, bem pequena, parecendo uma capelinha, que na verdade era o seu quarto. Era todo decorado com motivos e apetrechos indígenas: colares, cocares, arcos, flexas, etc. Em cima do prédio maior havia um reservatório para captar a água da chuva. "Tudo isso aqui foi construido com dinheiro de macho!"- contou-me sorrindo.

V

ENCONTRO COM O PARAÍSO

Infelizmente, o final das explicações de Rose ao telefone veio chocar-me sobremaneira. Ela relatou-me um pouco dos problemas e dificuldades para manter-se a condição oficial da praia; disse que um simples, porém quase inexplicável sistema de segurança, que depende de cada pessoa que a freqüente, funciona constantemente.

Assim, cria-se um espírito comunitário de cumplicidade no desfrute de uma convivência sadia, livre de violência e desprovida de valores preconceituais. Para assegurar esta tranqüilidade, duas normas são estritamente seguidas; a nudez obrigatória, que iguala a todos, e a proibição de homens sós, sem família ou acompanhante do sexo feminino, de passar para a parte sul da praia, onde estão os bares e se concentram os associados e famílias em geral.

Por ser um solteirão convicto e juramentado, desde o meu divórcio, havia quatorze anos então, desabei sobre meus sonhos, e quase chorando de indignação, protestei:

- O que é isto, senão uma atitude preconceituosa?

Rose teve muita paciência para relevar minha revolta, argumentando com os problemas que durante muito tempo haviam enfrentado. Disse que grupos de indivíduos, muitas vezes alcoolizados, desciam ao Pinho com o objetivo explícito de barbarizar, dizer piadinhas para as mulheres, ou praticar atos obscenos pela praia. Para pôr fim a isso, tinha sido criada a linha divisória que deixava casais, famílias, mulheres desacompanhadas, e sócios de qualquer associação ou federação oficial de Naturismo do mundo de um lado, homens sem mulher do outro.

Convencida de meus princípios, ela acabou informando-me, que se fosse apresentado por um sócio, que abonasse minha conduta, eu teria a chance de associar-me, e então poderia circular livremente pela praia, ou pelos domínios do Paraíso da Tartaruga. Aconselhou-me a viajar para o Pinho, e não me dirigir à praia, mas sim à sede da Federação, onde poderia conversar com o Celso, que me avaliaria, e talvez me aceitasse como sócio, abrindo-me as portas do Naturismo oficial no Brasil.

Me pareceu estranho ser avaliado por alguém que nem fosse nascido, quando eu me apaixonara pelo ideal de Luz del Fuego; e que também nem sonhava com Naturismo, quando eu, minha ex-esposa, e nossos amigos nos banhávamos nus nas duchas da praia ao sul de Mambucaba, dezoito anos antes. Mas antes assim.

A cerração tinha subido devagar, mostrando aos poucos um dia muito bonito, como a ocasião merecia; o velho Voyage azul seguia engolindo a estrada, rumo norte. O coração palpitava e a cabeça fervilhava com todos estes pensamentos e lembranças; a expectativa era ainda maior, em vista do problema de minha aceitação ou não, pela FBN. Para mim, estava bem claro que os argumentos da Rose já houvessem me convencido, sobre a necessidade da divisória na praia; era realmente uma lástima que as coisas tivessem de ser assim, mas também era natural que, num país onde o ideal naturista recém tomava corpo, houvesse tantos tarados curiosos ( voyeurs ), e moralistas xiitas ( hipócritas ), tentando perturbar a paz dos recantos naturistas. Isto apesar deste mesmo país possuir quase oito mil quilômetros de litoral, do cabo Orange, no Oiapoque, Amapá, ao Chuí, no Rio Grande do Sul; tendo hoje, menos de quatro quilômetros oficialmente reservados à prática oficial do Naturismo.

Também era natural que aquelas pessoas que corajosa e abnegadamente haviam enfrentado todo o sistema, para conquistar este ainda pequeno, porém precioso espaço, vissem-se no direito de defendê-lo com unhas e dentes, se necessário fosse. Deus estaria ao meu lado ao chegar lá, como sempre estivera e estará; aquelas pessoas me aceitariam em seu meio.

Seguia dirigindo, o tempo parecia passar em câmera lenta naquela manhã. Cheguei à região de Florianópolis e São José, com seu tráfego pesado e lento; são cerca de trinta quilômetros onde não se roda a mais de sessenta por hora. Sonhava com uma "free-way" de Porto Alegre ao Balneário Camboriú em meio à tranqueira, quando uma placa despertou-me: "BALNEÁRIO CAMBORIÚ - 70 km"; faltava muito pouco.

Rose havia fornecido indicações bastante precisas a respeito do caminho, eu as anotara e trazia ao meu lado, sobre o assento do carona; segundo estas, a estradinha que me levaria ao Paraíso da Tartaruga encontrava a BR-101 bem no alto do morro do Boi, final do primeiro subidão depois de passar o hotel Plaza Itapema, para quem viesse do sul, primeiro também após passar por Balneário Camboriú, para quem viesse do norte. A saída, quase escondida e bem no alto do morro, para o leste, fica bem na entrada da pedreira da construtora Sultepa.

Tomando esta estrada de chão batido, passa-se à esquerda da pedreira e na primeira curva reversa, à direita e logo à esquerda, descortina-se uma belíssima vista de toda a praia do Estaleiro. Prosseguindo por esta estrada, vai-se passar por uma pequena igreja católica (à esquerda), uma escola pública (à direita), e um bar (à esquerda); em seguida ao bar, uma rótula onde se deve virar à esquerda.

Uns seiscentos metros depois, toma-se uma junção à direita, que segue em curva, também para a direita, até a próxima junção à esquerda, talvez a uns quatrocentos metros da primeira. Entrando aí, vai-se passar por um belo sítio (à esquerda), depois algumas casas menores, e uma curva à direita. Até aí, a estrada é muito melhor que muitas federais asfaltadas, dá para rodar até em quarta marcha, embora seja prudente fazê-lo em terceira, por causa de eventuais pedestres, ou carros que venham em sentido contrário.

Logo depois da curva, pode puxar a segunda, e até a primeira, pois se inicia o subidão do morro que isola o Pinho. Uns cinqüenta metros depois do alto da subida, há uma saída à direita, com uma placa onde se lê: "A NATUREZA TE ESPERA NA PRAIA DO PINHO". Vira-se aí, outros cinqüenta metros adiante há um largo com uma imensa placa, que explica ser, a partir dali, uma área de prática do Naturismo, citando algumas das principais normas do código de ética, que devem ser estritamente seguidas por qualquer visitante, como deixar suas câmeras guardadas nos carros, por exemplo.

Durante o verão, é melhor deixar o carro estacionado neste largo, ou num estacionamento particular e fechado, logo em frente; sempre há algum guardador para cuidar. Pode-se também prosseguir com o carro até a praia, sem parar no meio do caminho, mas o problema é que há muito poucas vagas, que logo cedo ficam ocupadas, pouco espaço para manobras, e a subida de volta é muito penosa. O pavimento, que houvera sido feito em oitenta e cinco, há muito se esfacelou por completo, o que obriga os motoristas a queimar muito da embreagem e dos pneus, na tentativa de subir, quase impossível se chover um pouco.

Segundo a Rose, eu não deveria entrar ali, mas prosseguir até o alto do próximo morro, o da Tartaruga, onde, ao final da subida e de uma curva à esquerda, entra-se à direita pelo caminho de acesso ao Paraíso.

Cheguei a Itapema, parei num posto, para abastecer o carro e desabastecer a bexiga; o frentista confirmou que o hotel ficava logo adiante, o coração acelerou com o carro, ao deixar o posto. Passado o Plaza, iniciei a subida pela terceira faixa, atrás dos caminhões, por desconhecer a extensão da mesma; tive que subir lentamente sem necessidade, pois o trecho é realmente longo. Finalmente, a construtora, tomei o caminho e logo descortinei a vista; no final do cenário, uns quatro quilômetros à frente, pode-se ver a estrada subindo o morro que fecha a praia do Pinho pelo sul.

Fui seguindo as instruções como pude, mas a palpitação me deixava tão nervoso, que consegui errar o caminho, não entrando à esquerda na segunda junção após a rótula do Estaleiro, indo parar no canto norte desta praia. Havia algumas pessoas por ali, indaguei e me informaram para subir o primeiro morro à direita; voltei, mas tornei a passar pela junção, indo virar à direita na outra, fui parar num caminho de boiada, que subia um morrão.

A subida era tão íngreme, e o caminho tão ruim, que o "azulão" refugou; bufando como um potro teimoso. Decidi parar ali mesmo, antes de voltar, para respirar um pouco de ar puro, e reduzir a palpitação. Desci devagar, refazendo o caminho desde o Estaleiro e acertando desta vez; logo cheguei ao topo do morro do Pinho e à placa do acesso à praia. Obedecendo às instruções segui adiante, e depois da outra subida encontrei a entrada, com uma plaquinha que dizia: "FBN - Entrada Proibida". Acreditava estar sendo esperado pelo Celso, por isso não tive receio de enveredar por este caminho.

O caminho, bem rústico, serpenteava pela mata virgem; depois, uma curva à direita e uma casinha, ao lado de uma porteira fechada com uma corrente atravessada de lado a lado. Parei o carro diante da porteira, dois meninos, visivelmente irmãos, devido à semelhança física, vieram me receber; atrás deles surgiu da casa um homem jovem, mulato claro, trazendo uma prancheta na mão direita. Os meninos vestiam calções muito surrados, o homem estava de calça jeans, sem camisa; seu braço esquerdo não existia, podia-se ver o local da amputação, quase à altura do ombro.

Foram extremamente simpáticos, o homem apresentou-se como Luiz, funcionário da AAPP; informou-me que a Rose não estava, e que tampouco aparecia havia mais de uma semana, pois estava em Florianópolis; isto me tornava uma visita inesperada, uma vez que ela me dissera que não havia telefone no Paraíso por aquela época. Pedi para falar com o Celso, mesmo assim; ele pediu que preenchesse o formulário da prancheta, indicou-me o estacionamento logo adiante à direita, soltando a corrente para que eu avançasse, e veio ter comigo a seguir, para me conduzir à casa do mesmo.

Descemos por um pequeno caminho à esquerda da rua principal do condomínio, e chegamos à casa, muito grande, de dois pavimentos, toda construída em madeira bruta e vidro, muito bonita; contornamos a casa, passando em frente à varanda de entrada, e chegamos aos fundos da mesma, ou ainda, o lado de trás. Paramos diante de uma porta aberta sobre uma pequena escada de três degraus; dentro, dois homens nus, estavam trabalhando num microcomputador. Tive um choque, não por sua nudez, apesar de serem as primeiras pessoas que eu via nuas por ali; mas por causa do aparelho, pois juro que aquele ambiente tão rústico, no meio daquela mata tão fechada, não me levava a esperar encontrar tal parafernália cibernética. Sinal dos tempos.

Luiz interrompeu o homem mais alto, de cabelos encaracolados, para anunciar-me; ele olhou-me de alto a baixo, lá fora, eu estava absolutamente vestido, inclusive com sapato e meia. Ele pediu que eu aguardasse um momento, pois logo me atenderia. Tempos depois, Celso confessaria ter julgado tratar-se de um vendedor de qualquer coisa.

Fiquei em pé ali fora, por uns dez minutos. Olhando em volta, podia-se ver as construções mais próximas, entre a mata. Alguns metros a sudoeste da bela casa, onde Celso vivia com a família, erguia-se uma construção maior, também com dois pavimentos. Na descida da encosta, ao sul de onde eu estava, e bem encravadas na mata, duas casinhas menores, de um pavimento, e uma construção em alvenaria, que mais tarde saberia ser o banheiro coletivo da área de camping. Mais a sudoeste, entre muitas barracas coloridas armadas, uma estranha construção mista, em alvenaria e madeira, de forma circular, cujo pavimento superior lembrava um coreto, daqueles das praças principais de muitas cidades interioranas; aquela era a cozinha comunitária, dos sócios da AAPP. Dava também para perceber, que mais a oeste e acima, havia outras casas de médio porte.

As casas são construídas de uma forma totalmente natural, possuem estrutura principal em postes brutos de eucalipto, amarrados por caibros rústicos e forradas com casca de pinho, com grandes vidraças. Há corrente elétrica, em 220 Volts, e água pura encanada, captada mais acima nas nascentes da mata; o sistema de esgotos é por sumidouros, estratégica e ecologicamente distribuídos.

Todas as construções dispõem de instalação de gás de botijões, com aquecedores para água; muito confortáveis, de fato. Estão de tal forma integradas à mata, que parecem escondidas, não sendo possível avistá-las nem da praia do Pinho, logo abaixo ao sul. O local é apaixonante e exuberante; a abundância de palmiteiros, ajuda a esconder e refrescar as casas, sob suas copas.

Celso terminou de instruir o outro rapaz, no computador, e saiu para atender-me; começamos a conversar ali mesmo, no platô abaixo da casa, de onde também se podia avistar o mar lá embaixo, apesar da vista ser peneirada por milhares de ramos, galhos e folhas. Ali ficamos por mais de uma hora, nos conhecendo e identificando nos pontos comuns. Ele vivia com sua mulher, Paula, e os dois filhos, Gabriel, o mais velho, que se encontrava com os avós em Porto Alegre na ocasião, e o bebê Valentina, de um ano recém feito, ainda engatinhando. Enquanto conversávamos, avistamos Paula subindo da praia com Valentina, ele as indicou, porém vieram contornando por cima, entrando na casa sem passar por nós.

Também visivelmente impressionado por nossas identificações, Celso convidou-me a um passeio pelo Paraíso da Tartaruga. As dez casas, mais a pousada, o restaurante, o banheiro coletivo do camping, e a cozinha comunitária, tinham sido construídos durante a vigência do contrato de comodato com os proprietários da terra. Os sócios patrimoniais da AAPP, puderam adquirir o direito de usufruir delas, mediante o pagamento de um valor, de acordo com cada casa, para um consórcio construtor entre a FBN e uma empresa chamada Naturis, de propriedade de Celso e Paula. O contrato de comodato estava por vencer, e os proprietários não pareciam dispostos a renová-lo; o que suspendeu a continuidade das construções. O plano original era o de uma mini-cidade naturista, a exemplo de Cap d'Agde, na França.

A situação estava num impasse de grandes proporções, de um lado os proprietários da terra, na verdade posseiros, de outro os que haviam adquirido o direito vitalício de uso das cabanas, no meio a FBN e a Naturis, sob o comando do Celso. Segundo ele, os contratos firmados pelos titulares destas casas, sócios patrimoniais da AAPP, com a FBN, previa que o direito de uso das mesmas poderia ser vitalício, desde que se mantivesse o comodato do terreno. O que ocorreu foi que o comodato expirou, e a despeito de todos os esforços e manobras do Celso; bem como mais tarde de outros, até eu mesmo, para convencer os irmãos Camargo de Araújo a assinar um novo contrato, estes não demonstraram o menor interesse em fazê-lo, tudo indicando que pretendem encontrar alguma forma legal de esvaziar o local, para explorá-lo economicamente por conta própria.

Caminhamos por toda a área, enquanto ele mostrava cada construção, explicando o modo como fora erguida. O prédio grande, mais próximo à casa deles, abrigava no andar térreo o restaurante "Tijolo Doido", administrado pela Paula, que recebera este nome devido à maneira como haviam sido assentados os tijolos de suas paredes, de diferentes tamanhos e formatos, restos de outras obras. Até mesmo alguns garrafões, originalmente cheios da pinga que deve ter alegrado os corações dos construtores, ocupam lugares entre os tijolos; a aparência final chega a ser um pouco surrealista. Parte do pavimento superior, abriga o apartamento do Zig, o restante é a secretaria da AAPP, com uma mini-biblioteca.

Logo adiante, e no mesmo alinhamento, mais três construções; a primeira, e maior, é a pousada, com quatro quartos e banheiro coletivo no térreo, e mais quatro quartos e um varandão no piso de cima. Ali, num dos quartos do piso superior, eu passaria aquela e outras temporadas no Pinho. A outra construção, é uma casa geminada, de duas famílias, a primeira de Wilson, Arlete e filhos, a segunda de um comerciante de Blumenau, ex-presidente da AAPP, Carlos. A terceira e última construção naquela linha, era a casa do Edson, paulista, presidente da AAPP na época.

Do outro lado da rua principal, e única, devido à descontinuidade do projeto original de trezentas casas, há mais cinco cabanas, como todos preferem chamar as casas. A primeira, do fundo para a entrada, muito bonita e com vista privilegiada para a praia, é de um cirurgião paulista, Nelson, também solteirão. A próxima é de um empresário curitibano, também Carlos, que costuma veranear com a esposa e quatro filhas, duas delas residentes na Alemanha. Depois vem a casa do Maurino, outro solteirão, empresário do "trade" turístico em Porto Alegre, e colorado roxo. Fora do alinhamento das outras, um pouco mais acima, há uma cabana inacabada; depois a bela cabana de Milton e Dorinha, um simpático casal de Porto Alegre.

Descendo pelo caminho que passa entre o restaurante e a pousada, entra-se na área do camping, com uma pequena piscininha natural, o banheiro coletivo, e a cozinha comunitária. Os platôs para as barracas são planos, com drenagem e tomadas de energia, são mantidos limpos pela AAPP, cada sócio contribuinte tem direito ao uso de um platô por trinta dias por ano, sem precisar pagar; os sócios patrimoniais podem deixar suas barracas montadas gratuitamente pelo ano todo, se desejarem.

A cozinha comunitária tem como equipamentos, desde copos, talheres, pratos e outros utensílios, a fogão industrial, forno elétrico, geladeira e churrasqueira, além de mesas, bancos e pias. Tudo fornecido e mantido pela AAPP, inclusive o gás.

O piso superior, da forma de um coreto, deveria ser uma área de convívio, mas acabou transformando-se em área de secagem de roupas e toalhas, há tanques na parede externa do banheiro, devido às constantes chuvas do verão. O convívio acabou sendo mesmo dentro da cozinha, onde muitos se reúnem depois do jantar, para serestas, serões, reuniões, jogos e brincadeiras, como a mímica de títulos de filmes, preferida de todos.

Por trás do banheiro, as últimas duas cabanas, e menores também; a do encantador casal Chico e Ana, de São Paulo, construída pelo Elmo, sob a orientação do carpinteiro que havia ferido seriamente uma das mãos, ficando impossibilitado de trabalhar. A outra cabana tem estado sempre fechada, e não me lembro de ter conhecido os usuários.

Quase na parte mais baixa do terreno, havia uma cancha de bocha, em mau estado de conservação, abandonada, que hoje já está desmanchada, porém sob o projeto de construção de uma melhor.

O caminho, na época sob a forma de uma escada com degraus escavados diretamente na terra, contidos por barras de casca de pinho, estão hoje substituídos por uma escadaria de alvenaria, mais limpa e segura, que leva até o platô principal sobre o rochedo, totalmente gramado e cuidado. Na extremidade do platô fica o mirante, que descortina toda a vista da enseada, da pedra dos ventos, no extremo nordeste do rochedo, até o pontal sul, rochedo que faz divisa com o Estaleiro. Um balaústre de madeira bruta guarnece o mirante, onde tremulavam as bandeiras da AAPP e da FBN. Por aquela época, a sede da FBN era exatamente a sala com o microcomputador, onde eu vira o Celso pela primeira vez, em sua própria casa.

Do grande platô, onde se pode assistir ao nascer do sol sobre o mar, ou o nascer da lua cheia, igualmente deslumbrante, toma-se o caminho, também sob a forma de escada escavada, que desce o paredão rochoso até o mar, uns vinte metros abaixo. Daí, seguindo para a direita, chega-se logo à prainha sazonal, descoberta por Rose e Edo havia quinze anos, quase na mesma época em que eu e Rosimar nos deliciávamos, nus com os amigos na Costa Verde de Angra dos Reis.

Da prainha, subindo os rochedos para o sul, ou contornando-os por trás, chega-se ao Pinho. É uma caminhada saudável, que os sócios da AAPP, hospedados no Paraíso, enfrentam felizes diariamente; claro que quando eu chego de volta da praia, ostento um palmo de língua para fora, mas faz bem à saúde do corpo e da alma.

Depois de mostrar-me tudo isso, e de conversarmos muito sobre o Naturismo no Brasil moderno, Celso levou-me à secretaria da AAPP, onde oficializei minha condição de novo sócio, pagando integralmente a jóia e a anuidade de 1993; aproveitei ainda, para pagar adiantado pelas diárias de minha estada na pousada, então chamada de Albergue, também administrada pela Paula. Ainda conversávamos, quando chegaram dois rapazes, vindos de Porto Alegre, conhecidos do Celso, que logo desceram para a praia. Em seguida chegou a própria Paula, trazendo Valentina e uma garrafa de cerveja bem gelada, que pretendia compartilhar com Celso; fomos apresentados e erguemos um brinde delicioso, o calor era imenso, a garganta estava seca, e o coração pedia uma comemoração. Paula e Valentina cheiravam a banho recém tomado; eu também ansiava por tirar as roupas e cair num chuveiro. Ela anunciara que o almoço estava quase pronto, eu tinha saído de madrugada do Gravatal, com apenas um copo de leite, pedi que me indicassem o quarto.

Como foi bom tirar a roupa, cada peça que despia era como um passo para dentro do paraíso; nu, desci para o banheiro, levando "necessaire" e toalha. A água da ducha, descendo por meu corpo, parecia levar para o ralo a poeira do preconceito, as escamas do medo e a sujeira da hipocrisia em que vivemos mergulhados até os cabelos, em nossa lide urbana diária. No Naturismo, que não deixa de ser a prática do nudismo em grandes espaços abertos, junto à natureza, cada indivíduo é único e integral; ou seja, cada pessoa é apenas e exatamente o que é. O nudista aceita-se da forma como é, não tem preocupações quanto a sua aceitação pelos que o cercam; da mesma forma como aceita incondicionalmente seus semelhantes, como são, não tentando modificá-los, nem mesmo em nome do amor.

As razões para se andar nu são várias, como as que Luz del Fuego descrevia nas palavras de seu personagem Paula, no livro "Trágico Black-Out", em 1947.

É bem mais fácil perguntar o porque da necessidade de calções, maiôs ou biquínis, para tomar sol ou nadar. Além disso, nascemos nus, e a natureza não nos dotou de qualquer outra cobertura a mais que nossos ralos pêlos; não havendo, na realidade, qualquer motivo para nos envergonharmos de nosso corpo, ou de partes específicas dele, como os órgãos sexuais, que são responsáveis, não só pelo milagre da reprodução, como também por serem meios e fontes para a obtenção de um dos maiores prazeres presenteados à espécie pelo Criador, o prazer sexual.

Talvez mesmo, a espécie tenha enveredado por um caminho filosófico tão complexo, que perdeu-se dentro do próprio emaranhado que criou; o ser humano parece hoje, envergonhado de sentir prazer e declará-lo. A estrutura de todas as religiões, por exemplo, transforma em pecados capitais, em escalas diferentes, a maior parte das formas de prazer; valorizando, via de regra, o flagelo do sofrimento físico ou espiritual. Jejuam, fazem votos de castidade, enclausuram-se, auto-flagelam-se, proíbem o prazer às mulheres, e até mesmo aos casais; ou seja, recusam uma dádiva divina, ofendendo seu Criador.

Mais do que tudo, estar nu, é despir todas as máscaras e carapuças que escondam o ser humano de sua real condição natural. É bem como se as pessoas se tornassem mais sinceras, absolutamente sem medo de não agradar aos outros; ou ainda, que nem tivessem a preocupação de agradar, nada além da consciência do senso comum. Todas as pessoas são iguais, porquanto maravilhosa e totalmente diferentes sejam entre si. São iguais, principalmente por todos os seus direitos e deveres conscientes, e diferentes, física e espiritualmente. A auto-aceitação, é a mais sublime forma de reconhecimento e gratidão à natureza; é a verdadeira felicidade, tão avidamente procurada, normalmente em objetivos totalmente materiais ou externos.

Guardei minhas roupas, na esperança de só tornar a vesti-las após três semanas. Fui para o restaurante almoçar; experimentar a comida da Paula, que Celso havia elogiado tanto. O filé de peixe, com purê de batatas, acompanhado de uma sortida e gostosa salada, apesar de trivial, confirmou a expectativa.

Durante o almoço, conheci algumas outras pessoas, como Iracema, não a "virgem dos lábios de mel" de José de Alencar, mas a esposa de Luiz, o porteiro da associação; também o cirurgião paulista, e dois dos três salva-vidas, do Corpo de Bombeiros do Estado de Santa Catarina, que se revezam em duplas, durante toda a temporada, protegendo os banhistas do Pinho, eram Robson e Nunes, o terceiro estava em sua semana de folga, Cavalcante. Os dois salva-vidas, alternaram-se almoçando e retornando a seus postos na praia. A AAPP os mantém, durante os meses do verão, recebem alimentação e moradia, num dos quartos da pousada.

Depois do serviço, Paula saiu para o Balneário; quase diariamente o fazia, para comprar o que necessitasse para o Tijolo Doido. À noite servia pizzas, cremes e outros petiscos, além do próprio cardápio do almoço. Também aproveitava para passar na agência dos correios, para esvaziar a caixa postal, e no videoclube, pois sempre trazia um ou dois bons filmes, que assistia com o Celso em casa à noite, deixando à disposição no vídeo do restaurante, no dia seguinte. Permaneci ali um pouco mais, sendo logo encorajado, pelo Celso, a descer para a praia, para conhecer mais gente e desfrutar da bela tarde de sol; não foi preciso empurrar-me, peguei minha toalhinha e desci.

Chega-se primeiro à parte destinada aos solteiros, ou antes, homens desacompanhados de mulheres, onde eu teria de permanecer, não tivesse tido a idéia de ligar, conversando com a Rose e conhecendo o Celso a seguir. A média de freqüência, neste lado da praia, está dividida entre três tipos básicos de indivíduos; os homens casados, que chegam normalmente sozinhos, vêm para reconhecer o terreno, ou seja, certificar-se do ambiente, para voltar com suas famílias mais tarde, ou em outra ocasião; solteiros que experimentam o Naturismo pelas primeiras vezes, na maior parte dos casos levados por pura curiosidade, mas que acabam voltando acompanhados pelas namoradas; e homossexuais masculinos, sós, ou em pequenos grupos, que vêm aparentemente para curtir mesmo a praia, o sol e a brisa, em liberdade, tendo um comportamento tão discreto e tranqüilo, que quase não são notados.

Ao contrário do que se poderia supor, raríssimos são os curiosos que entram na praia; até mesmo em vista do grande medo machista do tabu da nudez. Ocorre que o sistema patriarcal em que nossa sociedade está embasada ensina os meninos a ligar a idéia da nudez feminina a algum tipo de erotismo. O cinema, o teatro, a televisão, a imprensa, as casas noturnas, os "out-doors" publicitários, enfim, quase tudo mostra a nudez feminina invariavelmente ligada ao apelo erótico.

Isto pode levar um homem, que nunca tenha vivido uma experiência naturista, a pensar em uma entre duas hipóteses:

- "Ao chegar lá, vendo tantas mulheres nuas, não vou conseguir resistir, vou passar o tempo todo excitado; vai ser um problema, pois vou ter que disfarçar para que ninguém perceba, principalmente minha esposa, que vai ficar brava se me vir excitado pela visão de outras mulheres. Já decidi que não vou!"

Ou então:

- "E se eu chegar lá, e passar o tempo todo de pinto mole: será que meus amigos vão pensar que sou bicha? Que não gosto de mulher? Já decidi que não vou!"

Na verdade, este raciocínio tão machista quanto até comum, leva o bicho homem do sexo masculino a valorizar tanto sua virilidade ligada a padrões preestabelecidos, que desvia-se da real hombridade. É claro que para ser macho, não é necessário ter uma ereção diante da nudez de cada mulher sobre a face da Terra, principalmente quando esta nudez for natural, desprovida de qualquer apelo erótico. Se fosse assim, todos os médicos teriam de ser eunucos, bem como os enfermeiros, fotógrafos, pintores, escultores, índios e naturistas de todo o mundo.

Tolice, preconceito metido na cabeça dos meninos, que são levados a crer que precisem ser animais indomáveis toda a vez que tirarem as roupas, como se estas fossem as grades das jaulas que mantém sob controle tais feras. Nós somos animais racionais, temos perfeito controle sobre nós mesmos, inclusive e principalmente sobre o estímulo sexual; somente uma sexualidade totalmente mal resolvida pode tornar-se impecilho para a liberdade plena do Naturismo.

A curiosidade pelo corpo alheio, pode e deve ser absolutamente natural, como uma forma até de reconhecimento; gravamos as feições do rosto de uma pessoa, como podemos gravar o formato dos seios, o tamanho da barriga, os cabelos, o tipo das mãos, a aparência do pênis, o volume dos pêlos pubianos, ou o bumbum.

Tudo isso de uma forma absolutamente natural porquanto mais completa do que na vida urbana, onde apenas a cabeça, as mãos, altura e gordura ou magreza podem ser observados. Assim, se fizéssemos num estúdio, três fotos de uma mesma pessoa, uma em que ela aparecesse vestida de uma forma bem descontraída e habitual, outra mostrando-a ricamente produzida para um baile de gala, e a terceira da pessoa completamente nua; e mostrássemos estas fotos a diversas pessoas que a conhecessem, perguntando-lhes qual das três retratasse melhor seu conhecido, é bem provável que a maioria optaria pela foto que mostrasse a maneira como habitualmente a vejam, mas se as mostrássemos à própria pessoa, esta certamente optaria pela foto em que aparece despida, como se conhece a si própria, sem máscaras.

A curiosidade pelo Naturismo também é perfeitamente natural, qualquer pessoa que nunca tenha visto, ao vivo e a cores, um ambiente naturista, tem a tendência de ansiar por este momento. Uns preferirão parar lá no topo do morro, apreciar a beleza do local, vendo de longe as pessoas na praia, que sabe que estão nuas, embora não possa distinguir direito, devido à distância. Outros vêm até a pedra que serve como uma espécie de mirante sobre o lado dos solteiros, dali vão ter uma visão mais clara das pessoas que estiverem daquele lado da praia, a maior parte homens. Um outro contingente, bem maior que os outros, desce até a recepção da praia, e pede informações sobre o funcionamento e regras de convivência naturista; pode-se dizer que mais de metade destes acaba vencendo os bloqueios, despe as roupas e boa parte dos preconceitos, e corre para as areias e a liberdade.

Na verdade, muita gente não vai conhecer o Pinho, ou outra área destinada à prática do Naturismo, por vergonha ou receio de ser impedida, até mesmo rechaçada; outros espiam lá de cima do morro, por temer estar fazendo algo errado, que não seria aceito pelos naturistas. Nenhum destes dois temores tem qualquer fundamento; se fôssemos egoístas e não quiséssemos compartilhar nossa felicidade com todos os nossos semelhantes, não estaríamos num local público, nem estimularíamos tantas reportagens que a imprensa sempre tem realizado sobre a nudez social.

A portaria, único acesso público à praia, é o limite para a observação, a partir daí é obrigatório estar nu; as mulheres que assim o queiram, podem despir-se ao atravessar a divisória, ou até mesmo um pouco mais adiante, onde escolher ficar. O importante é que se dispa, para igualar-se aos outros. O mais comum, é que as pessoas que entram pela primeira vez corram para a água, vestindo-se com ela até superar a "síndrome dos cinco minutos"; mas é extremamente importante que traga consigo um bom protetor solar, de fator bem elevado, para proteger a pele que nunca tenha sido exposta ao sol antes. Convém ainda, trazer cadeiras e guarda-sol; não se deve arriscar expor seios, púbis e bumbuns ao sol impiedoso, sem o uso de bons filtros por tempo muito longo.

O trabalho voluntário na portaria chega quase a ser uma das melhores atividades da praia, havendo sempre bastante gente disposta a fazê-lo. É importante, contudo, que o recepcionista esteja bastante familiarizado com o código de ética, seja cortês e oportuno, e realmente sinta-se bem à vontade para receber pessoas de todos os tipos, com graus de expectativas muitas vezes bem diferentes.

Em frente à portaria, pelo lado de fora, fica o bar e restaurante do Pinho, construído para a temporada de 1985 pelo Álvaro e a Yvonete, aí, por estar no acesso, pessoas nuas e vestidas coexistem de uma forma no mínimo curiosa e interessante. Pode-se ver homens, mulheres e crianças totalmente despidos entrando e saindo, bebendo e comendo, ou utilizando o telefone público que há ali, em meio a um sem número de pessoas vestidas, que nunca viram ou praticaram o Naturismo antes, muitos deles bebendo algo para se soltarem o suficiente para ousarem despir-se, anestesiando os cinco minutos. Se pode ver bem como estes, infrutiferamente tentam disfarçar a curiosidade de devorar com os olhos a nudez dos outros, denunciando em suas expressões a dúvida:

- "Será que eu terei a coragem de andar por aí assim?"

Seguindo alguns metros além da portaria, pela areia, chega-se à decantada, discutida, e não menos necessária divisória. Durante o verão, ela é constituída de duas linhas paralelas, transversais à praia, de bambus cravados na areia; as linhas distam uns dois metros uma da outra, deixando uma área neutra entre elas. Não há cerca, nem biombo, apenas um cartaz que diz: "AAPP - Área reservada a sócios, famílias e casais." Na parte mais alta da primeira linha, fica o Zig, de apito e binóculo nas mãos, policiando a mesma.

Uns trinta metros depois, está a guarita e posto dos salva-vidas, construída de forma rústica, com cobertura de folhas secas de palmiteiro; do alto do observatório, munidos de binóculos, eles não perdem nenhum banhista ou nadador de vista, por toda a extensão da praia.

Pouco depois está o primeiro bar, do Álvaro, construído no mesmo estilo das cabanas do Paraíso, a partir do telhado que o seu Domingos, falecido em um desastre automobilístico alguns anos antes, fizera construir para criar uma área de sombra para a praia. A simpatia e bom humor constante do Álvaro, criou aí uma grande freguesia, fiel e amiga. A uns cinqüenta metros do primeiro, está o segundo bar, do Yvan, bem mais sofisticado, um prédio de dois pavimentos todo em madeira, cujo segundo piso é hoje uma pequena pousada. Os dois bares servem sanduíches, petiscos, frutos do mar, refeições e bebidas diversas, dispõem de toaletes e churrasqueira pública, e fornecem serviço de garçom pela praia, para que as pessoas possam ser atendidas em seus próprios guarda-sóis. No bar do Yvan, há ainda, mesas de sinuquinha, pebolim, e cancha coberta de bocha. Os dois têm sistema de som, com boa música para quem estiver nas proximidades.

Mais ao fundo da praia, está a rede de voleibol, muito concorrida todo final de tarde, quando alguns times se formam para disputar torneios informais, em que a habilidade nem sempre é a tônica.

Como eu estivesse só ao atravessar a divisória, chamei a atenção de algumas pessoas, que acabariam se tornando grandes amigas mais tarde. Acenei para o Zig, que havia me visto com o Celso mais cedo; e logo para os salva-vidas, com quem almoçara. Em frente ao bar do Álvaro, avistei o cirurgião paulista e decidi aproximar-me para conversar, ele bebia sozinho, mas não me pareceu muito hospitaleiro, parecia mergulhado em divagações, deixei-o com elas e fui molhar os pés na beira da praia.

Havia bastante gente, para um dia de semana, mas era fevereiro, muitos em férias, como eu próprio. Algumas pessoas jogavam frescobol, outras peteca, a maior parte conversava, senti-me a única pessoa sozinha num raio de trezentos metros. Quando voltei em direção ao bar, vi o médico com o copo, e percebi que alguém estava mais só que eu.

Olhando em volta, observei os pequenos detritos espalhados pela areia, coisas deixadas para trás por pessoas pouco zelosas, como embalagens de sorvetes ou salgadinhos, maços vazios e pontas de cigarros, além de outros, que o mar faz questão de devolver à civilização que os gera. Lembrei das caminhadas ecológicas, que promovíamos com os hóspedes do hotel do Prado, no litoral sul da Bahia; cada um recebia um saco para catar detritos pela areia enquanto caminhávamos um quilômetro para o norte, até uma pequena lagoa, e voltávamos. Recebia um prêmio quem trouxesse mais lixo.

No balcão do bar, pedi um saco plástico ao Maurício, e empreendi minha própria caminhada ecológica; andei por toda a praia catando lixo, o que veio a tornar-se um hábito. Gosto de repetir este gesto cedo, pelas nove da manhã, pois acredito que haja pelo menos quatro grandes vantagens em fazê-lo:

1- a caminhada matinal pela areia é salutar, um excelente exercício aeróbico;

2- o ato repetitivo de abaixar-se para apanhar os detritos é um ótimo abdominal;

3- a caminhada em direções variadas, e o gesto de catar detritos, faz o sol da manhã pegar o corpo de forma bem distribuída;

4- a consciência civil e ecológica fica bem alimentada.

Depois de limpar a praia e encher o saco, de lixo, fui sentar-me aos pés da guarita dos salva-vidas, conversando um pouco com o Robson. Pude notar que duas mulheres jovens, sentadas a uns quinze metros dali, me observavam insistentemente; pareciam comentar alguma coisa a meu respeito, e não pareciam muito satisfeitas com o que viam.

Tentei entender a razão daquilo, mas não conseguia achar o motivo de me olharem tanto, com aquele ar zangado, ou pelo menos intrigado; pensei que pudessem ter excursionado comigo, afinal fui guia por tantos anos, levei gente dos quatro cantos do Brasil em tantas viagens, é freqüente não lembrar de todos os rostos. Deveria ser esta a razão, firmei a visão nelas e forcei a memória, nada. Decidi ir até elas para esclarecer, não queria passar por mau educado.

- Olá! Tudo bem? Eu estava ali sentado, confuso pela idéia de conhecê-las de algum outro local, meu nome é Roberto Soares, sou guia internacional de uma grande operadora turística; sou novo aqui no Pinho, este é o meu primeiro dia. Será que já não viajamos juntos?

- Pois é; estivemos observando você justamente por causa disso. Como é que conseguiu passar para o lado de cá da praia?

A julgar pela gravidade do tom destas palavras, Cida estava bastante apreensiva por minha presença ali, daquele lado da divisória. Comprendi a aflição delas, e pacientemente resumi os acontecimentos que me franqueavam a praia; a atitude das duas mudou como da água para o vinho. Apresentaram-se, Cida é pernambucana, mas vive em São Paulo com o marido que é argentino, Luiz, que jogava frescobol um pouco adiante de nós; a outra moça era Deise, gaúcha de São Leopoldo, que estava com o então noivo Paulo (hoje estão casados e vivem na Alemanha). Ficamos conversando por algum tempo, comecei a sentir-me entre amigos.

Mais tarde, Paulo apareceu acompanhado de Renato e Alice, um casal de namorados, de Porto Alegre; fomos todos apresentados e eles insistiram para que eu tomasse parte no time de voleibol deles, para umas partidinhas. Tentei convencê-los que seria uma piada se o fizesse, pois sou péssimo em qualquer jogo com bola; eles insistiam que tudo não passaria de pura brincadeira, e que poderiam ensinar-me a jogar. As mulheres deram apoio, decidi acompanhá-los.

Foi um verdadeiro escândalo, a torcida em volta da quadra nunca tinha rido tanto assistindo um jogo de voleibol. Apesar do esforço e paciência do Renato, que me ensinava como sacar, meus saques caíam em qualquer lugar, menos na quadra adversária. O outro time, percebendo o ponto fraco, fazia pontaria em mim; dá para imaginar quanta areia comi, na tentativa de rebater a bola a cada vez. Aos poucos, comecei a sentir que me divertia, ao invés de envergonhar; as pessoas riam-se às custas de minhas trapalhadas, mas era bem claro que tratava-se de algo bem específico, era como se algum daqueles bons jogadores que me cercavam, tentasse realizar uma de minhas pinturas, ou ainda guiar um grupo de turistas pelo Canadá, o resultado seria provavelmente tão desastroso quanto meu desempenho naquela partida de voleibol.

A brincadeira, contudo, rendeu-me um grande número de amigos, pude travar conhecimento com muita gente especial. Por exemplo, Carla, uma das filhas do empresário curitibano, Carlos, que possui uma das cabanas no Paraíso. Ela tinha dezenove anos, e estudava teatro. Conversamos sobre minha pintura corporal, e ela aceitou o convite para ser pintada na manhã seguinte, quando se tornaria a primeira pessoa a ser pintada por mim no Pinho.

Subi da praia já bem tarde, com o caminho pelas pedras ainda iluminado pelo vermelhão do sol poente; com o horário de verão, a noite só chega por volta das oito e meia. Celso recomendara não andar pelas pedras no escuro, a menos que com uma lanterna. Nas noites de lua cheia, a lanterna pode ser dispensada, pois o rochedo fica todo prateado. Cheguei ao Paraíso feliz, mas muito cansado, ainda mais por causa do jogo; a ducha morna foi um bálsamo, saí do banho novo, recuperado e com o coração leve, por tudo o que me acontecera naquele dia, desde minha mãe, na madrugada, até o relaxamento daquela hora tão tranqüila. Apanhei um bloquinho de anotações, que seria meu diário, e uma caneta, indo sentar-me a uma das mesas do varandão, do lado de fora do Tijolo Doido, para escrever.

Paula apareceu e convidou-me a compartilhar uma cerveja gelada, ficamos conversando; ela contou-me sobre um show que iria assistir com Celso mais tarde, em Balneário Camboriú. Perguntou-me se gostaria de ir com eles, mas eu não queria vestir-me tão cedo, nem deixar o Paraíso; quis saber como fariam com o bebê. Ela explicou que a deixariam dormindo, recomendando a Iracema que viesse vê-la de vez em quando. Nem sei porque razão, ofereci-me para cuidar de Valentina, talvez por pura educação; minha surpresa foi ela ter aceito, com a maior naturalidade (como se naturalidade naquele local fosse razão para surpresas); disse que apreciariam muito, e que arrumaria uma cama para mim no quarto dos filhos. Era realmente incrível, eu os conhecera naquela manhã, e agora ficaria de "baby-sitter" de sua filhinha, dormindo em sua casa.

Tomei um delicioso creme de ervilhas como jantar. Antes de sair, Paula anunciou que o bebê já dormia, e que eu não tinha motivos para apressar-me, pois ela dificilmente despertaria tão cedo, costumava atravessar a noite tranqüila. Assisti ao Globo Repórter, em companhia de Cida e Luiz, mais os dois salva-vidas; depois do programa, foram todos dormir.

Fui até a casa, certificar-me do sono de Valentina, que realmente parecia um anjo, e retornei à TV. Havia uma espécie de videoteca naturista na prateleira abaixo do vídeo, escolhi um filme chamado "Naked Africa", e o assisti com enfado. Mostrava um grupo de naturistas num safari fotográfico por uma reserva ecológica sul-africana. Os cenários, os animais e o grupo passeando nu eram muito bonitos, mas o filme era destituído de qualquer emoção, apenas imagens soltas. Desisti pela metade da fita, rebobinei-a e desliguei tudo, fechando o Tijolo Doido e voltando à casa e a Valentina, que seguia em paz, viajando por seus sonhos de querubim, esparramada sobre os lençóis da cama de seus pais.

Fui para o outro quarto, lá estava a cama arrumada para mim; quanto carinho estava recebendo de pessoas que acabara de conhecer, achei que aquelas pessoas dedicassem carinho igual a todos os amigos, mas de qualquer forma eu estava particularmente sensível naquele dia tão especial, sentia-me como se fosse irmão de algumas delas.

Tive alguma dificuldade para dormir, pois além da cabeça a mil, eles haviam deixado muitas janelas abertas, por viver ali e não se incomodar mais com os insetos, que me incomodaram muito. Era o final de meu primeiro dia no Paraíso, recebendo carinho e sentindo a sinceridade nas atitudes das pessoas; sentia uma vontade imensa de ter uma companheira naturista. Quem sabe não venha a encontrar esta mulher um dia, no dia em que ela também me encontrar, com certeza; alguém que, como eu, tivesse pago todos os seus pecados no inferno urbano, estando disposta a construir uma vida real. Pedi a Deus que me cutucasse forte quando ela estivesse por perto, se a merecesse; decidi aguardar esta benção com paciência.

Assim adormeci, envolto em tais pensamentos; despertei um pouco depois, indo espiar Valentina. Detive-me alguns momentos a contemplar aquela cena de pureza; ela provavelmente sonhava com o mar, as árvores, os passarinhos e seus pais. Voltei a dormir, sendo despertado algum tempo depois por algum ruído que não identifiquei; fui logo ao outro quarto, encontrando Paula já despida e sentada à beira da cama arrumando o bebê, Celso estava no banheiro. Trocamos votos sussurrados de boa noite, ela agradeceu-me o cuidado com a filha, e regressei ao quarto com o coração transbordando de felicidade e tranqüilidade por ver que haviam chegado bem, encontrando seu bebê em paz.

Tornei a acordar muito cedo, com os primeiros raios de sol atravessando a janela aberta; não fazia idéia da hora, mas podia julgar que fosse cedo, pelo ângulo tão aberto de incidência da luz do sol e pelo silêncio absoluto que reinava. Saí da casa com muito cuidado, para não fazer barulho; apanhei o "necessaire" em meu quarto na pousada, tomei uma gostosa ducha e me barbeei. Fui sentar-me no varandão do Tijolo Doido, tudo ainda estava em silêncio. Tinha comigo a bolsa de material para pintura, além do bloquinho e da caneta; voltei a escrever, enquanto percebia que Iracema arrumava o restaurante para o café da manhã.

Depois de algum tempo, veio juntar-se a mim uma família, pai, mãe e filho. São de Paulínia, São Paulo, e também estão em férias; Jarbas e Sueli possuem dois grandes açougues, em sua cidade, o menino Jefferson teria uns doze anos. Conversamos bastante, e foi quase paixão à primeira vista; são pessoas mais do que bonitas, puras e simples, que estavam em sua segunda temporada naturista no Pinho e exultavam, emanando felicidade.

Quando Iracema abriu o restaurante, entramos todos para o desjejum de cinco estrelas; um "buffet" com sucos de frutas, queijos, frios, ovos, frutas, pães, cucas, biscoitos, geléias, bolo, mel, café e leite, p'rá ninguém botar defeito. Depois de satisfeitos, voltamos ao varandão, onde me contaram sua história no Naturismo; havia muitos anos, que os dois vinham recortando todos os artigos e reportagens sobre o tema que encontrassem. Conversavam sobre o que liam e programavam sua primeira visita, que acontecera um ano antes quando chegaram lá muito assustados, mas tinham sido tão bem recebidos, que apaixonaram-se por tudo.

A família desceu para a praia, o sol já ia alto; outras pessoas apareciam de todo o lado, muitas, bem mais do que havia na noite anterior. É normal chegar muita gente entre sexta à noite e sábado de manhã, para aproveitar melhor o final de semana; e aquele sábado era promissor, muito azul e ensolarado. Todos apressavam-se a descer, ninguém queria perder um minuto, eu esperava por Carla, para pintá-la. Ela apareceu com a pequena irmã, que insistia em também ser pintada; é muito difícil pintar crianças por dois motivos: não têm paciência para ficar imóveis, durante a pintura, nem para permanecer pintadas por muito tempo, depois de prontas. Concordei assim mesmo, pela diversão.

Decidimos executar o trabalho ali mesmo, no varandão, mas o primeiro inconveniente não tardou a acontecer; uma divisão inteira de um famigerado exército de mosquitinhos, tão pequenos quanto vorazes, atacou nossa posição, tornando nossa atividade dolorosa demais para quem queria apenas distrair-se. Felizmente, depois de satisfeito, o inimigo retirou-se, deixando-nos completar o trabalho, que ficou muito bonito.

Foram mais de duas horas de trabalho, e era evidente que valera a pena. Tiramos algumas fotos e ela esperou-me pintar a pequena Mayla; fiz-lhe uma grande flor exótica, de miolo azul, com pétalas alternadas em verde e vermelho, e escrevi seu nome em azul, na parte superior do peito. Não adiantou tentar dizer-lhe que estava bonita, ela sabia que eu não levara em seu trabalho, nem um quarto do tempo que gastara com a irmã, e ficou de carinha amarrada, exigindo que eu a pintasse de novo, noutro dia.

As duas desceram para a praia, para desfilar as pinturas; mais tarde soube que o Zig havia abordado Carla, para pedir que tirasse o "maiô", uma vez que julgara tê-la visto vestida de longe, só se convencendo de que se tratava de pintura ao olhar de perto. Ela subiu de volta radiante depois de algum tempo, tal o sucesso que fizera na praia; disse que todos fizeram questão de vê-la de perto, que ouvira muitos elogios e que queriam conhecer o artista. Como todo artista é vaidoso por natureza e narcisista de profissão, flutuei no ar.

O ser humano tem uma característica muito comum, quando vê alguém fazendo uma coisa que julga não ser capaz de fazer; ou admira tanto, que chega a idolatrar, como fazemos com o jogador de futebol, o piloto de fórmula um, o candidato preferido à presidência ou o principal ator da novela, ou odeia profundamente. Eu sabia que o sucesso repentino podia ser perigoso, por este aspecto; mas também acreditava que houvesse uma grande chance desta regra não funcionar bem assim naquele ambiente.

Sentia que o mais importante não era o sucesso, mas sentir-me bem sucedido entre aqueles que admirava e queria bem. Não deveria haver lugar para a inveja, era um sentimento quase simbiótico; se você é capaz de fazer algo que agrade as pessoas que lhe signifiquem alguma coisa, então faz e recebe nos brilhos de seus olhares, na espontaneidade dos sorrisos e nos elogios de incentivo, a recompensa que espera obter. Acredito que isto seja o que realmente importa, o reconhecimento; no ambiente naturista, ele brota dos corações, com muito mais facilidade e intensidade que na vida urbana.

Almocei ainda meio embevecido por aquele sucesso; enquanto comia, chegou uma equipe de reportagem do Jornal do Almoço, da RBS de Balneário Camboriú, e iniciaram uma entrevista com o Celso no varandão, descendo em seguida para a praia. Logo instalei-me de novo ali com Paula, para pintá-la; quando a repórter e sua equipe voltaram, a pintura já ia adiantada, despertando sua curiosidade. Ela tentou entrevistar-me enquanto pintava, mas fui eu quem lhe fez as perguntas, brincando sobre como se sentia, vestida, num calor daqueles, em meio a tanta gente pelada.

Paula tentou descer para a praia, deixando Valentina com o Celso, que reclamava de dores no fígado; quando chegou ao costão encontrou um grupo de pessoas que subiam à procura dele e voltou para acompanhá-los. Ao chegar e apresentar as pessoas, inadvertidamente tomou Valentina no colo; o bebê estava usando calça plástica, a pintura em acrílico colou no plástico e "kaputz", sobrou pouco para contar a história. Ao menos havíamos fotografado o trabalho logo depois de pronto; mas não posso negar a dor que senti.

Desci para a praia e fui muito cumprimentado pela pintura de Carla, voltei com o dia acabando. Era muita gente bonita aparecendo a toda hora, vindas de todos os lugares, e eu a tentar gravar nomes e procedências. No cair da noite, chegou à pousada, um grupo de dois casais bem jovens com um menino; tornamo-nos logo amigos, também são de Porto Alegre, embora um dos casais viva em Florianópolis. Os cinco acomodaram-se em um único quarto, ofereci-lhes algum espaço, para acomodarem pelo menos o menino, mas eles preferiram ficar juntos.

Por volta das onze horas, todos haviam se recolhido, o luar estava tão bonito que resolvi descer até o platô; debruçado no guarda-corpo do mirante, pude ver Carlos, o rapaz que ajudava Celso no computador, na véspera, e que também hospedava-se na pousada, ele praticava Tai-Chi-Chuan sobre as rochas do costão mais abaixo. Eu mesmo teria ficado ali por horas, apreciando a beleza do luar prateando o mar, que jogava suas ondas espumantes contra o escuro das rochas, não fossem os malditos mosquitos, que me colocaram em fuga para a segurança de meu quarto, onde o aparelhinho elétrico contra estes inimigos estava ligado. Concluí que precisava comprar uma lata de repelente, devido a minha alergia às picadas daqueles minúsculos insetos, que vez por outra apareciam em nuvens.

O terceiro dia amanheceu incrível, céu de brigadeiro; desci cedo, levando a bolsa de pintura, pois muitas pessoas haviam pedido, na véspera, que eu pintasse na praia. Lá encontrei Paula com Valentina, brinquei muito com a pequena, levando-a ao mar. Impressionou-me a atração que o mar exercia sobre ela, bastava largá-la na areia, que imediatamente engatinhava para a água. De uma forma irônica isto fazia sentido, Valentina nascera no Paraíso da Tartaruga; então, como um bebê-tartaruguinha ao nascer, queria chegar ao mar. Depois, refestelou-se numa cadeira de praia, como gente grande, tomando o sol da manhã; pouco depois das dez, subiram, Paula ia preparar o almoço.

No bar do Álvaro, encontrei a irmã mais velha de Carla e Mayla, chamada Darya. Ela mora em Hamburgo, Alemanha, onde é modelo e garçonete, além de ajudar a irmã mais velha, casada com um jovem alemão, numa lojinha de sua propriedade. Ela queria ser pintada, iniciei logo o trabalho.

Foram mais de duas horas e meia de trabalho, sentados junto a uma das mesas do bar, cercados de curiosos que faziam perguntas a todo o momento; muitos queriam saber sobre as tintas utilizadas, já a maior parte das mulheres queria saber quanto custava para serem pintadas. Na época, pintava amadoristicamente, nem me passava pela cabeça a idéia de ganhar dinheiro com a pintura. Não deu outra, muitas trataram de se agendar logo. A pintura em Darya acabou resultando numa das mais lindas que já realizei até hoje.

Pela primeira vez, experimentei a emoção de admirar meu próprio trabalho com encantamento; é claro que a beleza da modelo era tanta, que mesmo que eu lhe tivesse aplicado borrões, ainda sim o resultado seria lindo. Ela usava um cordãozinho de ouro no tornozelo esquerdo, única coisa que vestia além de minha pintura; as pessoas exultavam em volta, pedi que se afastasse um pouco, para que eu pudesse ver melhor o conjunto, meu coração quase parou. Creio que senti o mesmo que Michelângelo, em frente a seu Davi, só que ali estava Darya, viva; segurei-a pela mão esquerda, contendo-a, peguei um pincel, molhei-o no frasco ainda aberto da tinta branca e fiz um grande borrão sobre seu tornozelo direito, estava pronta a obra.

Subi para almoçar flutuando, nem sentia as pedras sob meus pés; quarenta e oito horas no Pinho e já conquistara meu espaço, sentia-me consagrado através de minha arte. Dois dias antes, pouca gente notara o cara que catava lixo na praia; mais tarde, todos riram muito do jogador trapalhão na quadra de voleibol. Naquele momento, as pessoas admiravam meu trabalho, tratando-me com respeito e carinho.

Quando desci de volta para a praia, acompanhei duas mulheres que ainda não conhecia; hoje, duas de minhas melhores amigas. A massoterapeuta Sônia Mueller, com concorridos consultórios em Blumenau e Balneário Camboriú, e a bancária Maria de Lourdes Artmann, que vive no Balneário; as duas são amigas inseparáveis, e divorciadas com filhos, Sônia tem até uma netinha. São criaturas encantadoras, firmes, alegres, bonitas e naturistas convictas. Até hoje imagino como deve ser bom morar no Balneário, só para estar tão perto do Pinho; a maior parte de nós viaja centenas de quilômetros para estar lá.

Na praia, de brincadeira, disse a Sueli, da família de Paulínia que conhecera na véspera, que gostaria de pintá-la; na verdade, só ia pintar um sol em seu peito, mas a paz interior dela é tão bonita, que acabei criando um trabalho de grande extensão, que encantou seu marido e seu filho. Ela ficou parecendo estar vestida pela pintura, era como se usasse um conjunto de bermuda e blusa regata colantes.

Quando terminava a pintura de Sueli, um jovem casal de Curitiba, Jarbas e Graziela, aproximou-se para perguntar se poderia pintá-la no dia seguinte, disse-lhes que o faria com o maior prazer, só que as tintas que trouxera tinham sido poucas, estava quase sem nenhuma, se eles pudessem trazer-me mais, tudo estaria bem. Eles concordaram. Na tarde seguinte trabalhei em Graziela, a pintura não tinha simetria, como as anteriores, era uma espécie de maiô verde claro, com desenhos coloridos em marrom, vermelho, amarelo e azul, espalhados pelo tronco.

Esta pintura, acabou sendo a abertura para o entendimento do significado de meu trabalho sobre a pele; tudo começou quando observei que havia um homem que se aproximava sempre que eu estivesse pintando, com um bloquinho e caneta nas mãos, passando todo o tempo a fazer anotações. Intrigado, perguntei-lhe numa das vezes, o que exatamente estava fazendo; ele apenas riu e disse que um dia, mais tarde, quando estivesse realmente seguro do que tinha suposto, me contaria. Jorge é uruguaio, estava em férias com a esposa, Cristina, hospedados num apartamento alugado por temporada no Balneário; fazem parte da AUDEN, Associación Uruguaya de Naturismo, embrião naturista uruguaio, ainda não oficializado e ilegal, contando com poucos participantes. Mesmo assim a AUDEN já escolheu e demarcou sua própria área para a prática do Naturismo, uma praia denominada Chihuahua, nas proximidades da elegante Punta del Este; lá, desafiam as autoridades e o conservadorismo de seu país, na esperança de tornar o movimento oficial e aceito pela coletividade.

Jorge e Cristina conquistaram-me com facilidade, são pessoas muito tranqüilas, que transmitem paz; os dois juntos, já participaram de inúmeros seminários e cursos de desenvolvimento pessoal. Na verdade, conforme pude saber quase dois meses depois, ao visitá-los em Montevidéu, o que ele fazia durante meu trabalho era um estudo sobre a influência da energia que emana dos poros da mulher que está sendo pintada, sobre o processo de escolha de cores e formas dos desenhos. Segundo ele, cada um dos órgãos vitais do corpo humano está produzindo reações químicas o tempo todo; na verdade, o corpo todo é uma complexa indústria química. Estas reações químicas liberam energia, boa parte desta energia é transformada pelo sistema nervoso periférico em ondas eletromagnéticas, como as que são transmitidas de uma antena de estação de rádio ou TV, por exemplo.

No corpo humano, estas ondas são transmitidas a partir dos milhares de poros da nossa pele, denominados chakras. Estando frente a frente e muito próximo de minhas modelos, e tendo desenvolvido sensibilidade intuitiva para o entendimento destas ondas eletromagnéticas, eu aplicaria sobre seus troncos, área de maior concentração dos órgãos vitais, formas e cores que teriam o poder de alterar as freqüências destas ondas e, na razão direta, a própria reação química, alterando positivamente o estado geral de espírito da pessoa.

Bem, cor é freqüência, ou seja, nossos olhos distinguem as cores dos objetos porque cada cor tem um comprimento de onda diferente; assim, fazia sentido o que ele afirmava, pois os raios de sol que incidissem sobre a pintura, levariam a alteração de freqüência aos órgãos. O que ainda faltava saber, era se eu realmente lia as auras das modelos, ainda que intuitivamente. Que lhes fazia bem, não havia mais dúvidas. Meu trabalho, uma brincadeira estética, poderia ser cromoterapêutico.

Meses mais tarde, levado por esta dúvida, procurei uma guru em Porto Alegre; ela trabalha com medição de aura e cromoterapia numa instituição especializada local. Mostrei a ela todas as fotos das pinturas que havia realizado, seu veredicto assustou-me tanto quanto impressionou; as teorias do Jorge estavam confirmadas. Aquela mulher descreveu em minúcias, as características pessoais de cada uma das mulheres pintadas, como elas estavam antes de começar a pintura, e como ficaram depois. Com tantos detalhes e realismo, que passei o tempo todo arrepiado da cabeça aos pés, enquanto falava.

Disse que olhava para as pinturas e via o mesmo que quando media a aura de uma pessoa a sua frente. O golpe fatal no que ainda me restasse de incredulidade, foi quando ela deparou com as fotos da pintura feita dia oito de fevereiro, sobre o corpo de Graziela; a mulher enrijeceu-se por instantes, e disse em tom grave:

- Você salvou a vida desta moça, com a sua pintura. Não me pergunte como, pois não tenho meios para saber o que aconteceria em seguida, mas você a salvou da morte naquele mesmo dia.

Ela terminava de dizer isto, e eu senti tudo rodar ao meu redor, como se tivesse levado uma pancada na cabeça e estivesse desmaiando; pude rever toda a seqüência dos acontecimentos daquele dia, desde o final da pintura sobre o corpo da Graziela.

Jarbas tinha exagerado um pouco nas doses de uísque que tomava, enquanto eu pintava; lembro-me que o Álvaro trouxe um porrete de madeira e entregou-o a ele, dizendo-lhe que ficasse de olho em mim, segurando o porrete, e nos divertimos muito com esta brincadeira. Depois do trabalho pronto, muita gente pedia-lhes permissão para filmá-la e fotografá-la, o que chegou a criar um pequeno desentendimento entre o Jarbas e um político de uma cidade vizinha, que julgou-se fotografado e armou um banzé. Superada esta crise, Graziela desfilou a pintura o quanto pode, até que decidiram ir embora para o Balneário, despedindo-se e saindo para o estacionamento na companhia de outro casal que também estava de partida para lá. Graziela anunciou que iria nua, ostentando a pintura, que ao chegar à cidade, se vestiria no próprio carro.

Quando chegaram ao estacionamento, o carro do Jarbas não quis pegar, Graziela ajudou o outro casal a empurrá-lo, enquanto Jarbas lhe dizia que, se o carro pegasse, ela seguisse com eles até chegarem à BR, pois ele não queria arriscar de parar na subida. Assim foi, o carro pegou, e ele subiu em disparada. Os três entraram no outro carro e seguiram atrás, menos de dois quilômetros mais adiante, numa curva, depararam com o carro dele caído num barranco, com as rodas para cima.

Jarbas estava inteiro, com apenas alguns arranhões na pele e, certamente, outros na alma; mas o lado direito do teto do carro, estava todo dobrado contra o assento onde Graziela deveria estar sentada. Se ela estivesse no carro, teria certamente sido esmagada. Que minha pintura fazia bem a quem fosse pintada, eu já sabia, bastava ver o estado de graça que ficavam, durante e depois dos trabalhos, sentir as vibrações intensas de seus corações e ver as extremidades dos lábios quase tocando as orelhas. Que lhes estivesse aplicando uma terapia relaxante, ou até mesmo coadjuvante de algum processo médico já era mais fácil de aceitar; agora, que pudesse salvar vidas, jamais poderia ter imaginado.

Daquela forma, foram se sucedendo os dias no Pinho; quando Rose finalmente chegou, encontrou-me totalmente ambientado, tanto que, dias depois, no carnaval, houve eleições para a nova diretoria da AAPP. Não havia oficialmente chapas ou candidatos, embora houvesse uma espécie de consenso em torno de alguns nomes, que se propunham a renovar a associação. Cada associado poderia votar em cinco nomes, os dez mais votados formariam o conselho deliberativo, com mais cinco suplentes; este conselho escolheria o novo presidente e seu vice. Surpreendi-me com o décimo-segundo lugar, entrando como segundo suplente, logo depois da Paula.

Como alguns dos eleitos não estivessem presentes, participei da reunião do conselho, que escolheu para presidente um moço chamado José, de uma cidade próxima, e que havia liderado o movimento que o levara ao cargo. Política, não entendo porque as pessoas têm tanto prazer nisto. O caso é que, a exemplo do que acontecera a Jânio Quadros no passado, "forças ocultas" acabaram levando José à renúncia meses depois; assumindo seu vice, um jovem e bem sucedido radialista de Santa Catarina, Milton Alves, atuante e bastante dedicado à causa naturista. Milton revelou-se também um grande estadista, ao conseguir sepultar uma antiga e mal disfarçada rivalidade entre os sócios da AAPP, freqüentadores do Paraíso da Tartaruga, e os que costumam estar na praia sem associar-se, acampando na praia. Passou com a esposa uma temporada acampado entre estes, sendo o presidente da AAPP, e estimulou a criação de uma entidade chamada TUPI, literalmente Turma do Pinho. A partir de então, as atividades passaram a ser conjuntas, como a Gincana de Páscoa de noventa e quatro.

Com o carnaval se aproximando, muita gente chegava todos os dias, aumentando a quantidade de amigos que fazia; chegaram Martha e Aldo, um jovem e belo casal de brasileiros, radicados na Suíça, em férias no Brasil. Chegaram, e encantaram a todos, principalmente pelo altíssimo astral de Martha; apaixonada por animais, ela andava sempre cercada por cães e papagaios. Na noite do dia doze, eu a pintei, deitada sobre um banco, na secretaria da AAPP; era um trabalho de simetria em verde claro, verde escuro metalizado, azul também metalizado, maravilha e amarelo. Na coxa direita, uma grande flor exótica amarela, delineada em marrom; na esquerda, um sol como o que fizera na perna de Darya, e a inscrição: PINHO SOUVENIR ÉTÉ 93, com assinatura em preto. Ficou linda e muito orgulhosa, ela é uma figura incrível, esbanja simpatia e fala com todo o mundo, é paulista; o marido, Aldo, é um gauchão meio calado, mas também simpático e culto.

Um dia, apareceu por lá um casal em viagem de lua de mel; Carlos e Cita não tinham nenhuma experiência com o Naturismo. Eram praticantes de biodança, em Porto Alegre; tinham mesmo se conhecido durante as aulas. Eu fiz a recepção deles no Paraíso, mostrando-lhes tudo, e falando sobre Naturismo; nos encantamos mutuamente, eles estavam acampados numa praia próxima e haviam saído naquela manhã, para conhecer os arredores. Chegaram ao Pinho, e alguém lhes falou do Paraíso, daí subiram para conhecer; não deu outra, decidiram aderir ao Naturismo e mudar-se imediatamente para o Paraíso, o que fizeram, vindo instalar-se na pousada.

Na manhã seguinte à sua chegada, estávamos no café da manhã do Tijolo Doido, eu, Martha, Aldo, Rose, Celso, Sueli, Jarbas e Jefferson, todos completamente nus e nos divertindo muito, como todas as manhãs, com as "ACM's", abobrinhas do café da manhã, como chamávamos os assuntos engraçados ou absolutamente sem importância, que surgiam naquela hora. Normalmente, a coisa começava quando estavam todos em silêncio, e alguém tentava literalmente ordenhar a garrafa térmica do leite, que tinha um defeito no diafragma da bomba de sucção. Todos os dias, Paula se desculpava, dizendo que ia comprar um diafragma novo naquela tarde, quando fosse ao Balneário, mas sempre esquecia. Na manhã seguinte, assim que o primeiro tentasse tirar leite da mesma, os outros caíam na risada, e as abobrinhas começavam.

Naquela manhã, ainda estávamos quietos, desjejuando, quando Carlos e Cita entraram no restaurante, vestidos com abrigos completos de ginástica, tênis e meias, tudo muito novo, coisa de enxoval; vinham animados, deram bom dia em coro. Quando todos olharam na direção deles, a gargalhada também explodiu em coro; os dois sofreram a gozação pelo resto da manhã, mas demonstraram muito bom humor, e o assunto acabou esquecido.

Mais tarde, à noite, foram se recolher muito cedo, logo após o jantar, como bons recém-casados; um grupo ficou reunido até mais tarde, no varandão. Estávamos eu, Celso, Rose, Cida, Jorge, Cristina, Deise, Paulo, Martha e Aldo; Celso falou muito sobre Pedras Altas, a outra praia naturista de Santa Catarina, noventa quilômetros ao sul, no município de Palhoça, instigando-nos a conhecê-la. Decidimos ir todos, na manhã seguinte, em caravana, tendo Rose como guia; combinamos acordar cedo, tomar o café e partir. Ninguém se lembrou dos pombinhos.

Quando Iracema abriu o restaurante para o café, lá estávamos todos, prontos para sair, vestidos com bermudas, abrigos, camisetas, tênis e meias ou sandálias; enfim, vestidos. Os carros já tinham sido aquecidos e preparados, já estavam estacionados logo acima do restaurante; tudo pronto para zarparmos. Não creio que qualquer um de nós tenha pensado em Carlos e Cita, tão excitados que estávamos pelo passeio que faríamos; apenas comíamos rápida e silenciosamente, quando ouvimos o bom dia em coro, dos dois. Foi absolutamente impossível conter as gargalhadas, os dois estavam completamente peladinhos, como vieram ao mundo; só que o ar de orgulho que ostentavam ao entrar e dizer bom dia, desapareceu num piscar de olhos quando perceberam que todos, sem exceção, estavam vestidos da cabeça aos pés. A consciência da situação atingiu a todos ao mesmo tempo, principalmente pela perplexidade que os dois estampavam nos rostos. Foi até difícil de convencê-los de que não tinha sido uma armação para pegá-los, mas uma grande coincidência. Depois de convencidos, decidiram ir conosco e foram vestir-se.

A caravana seguiu composta de três carros; à frente o carro do Paulo, com a Deise, Cida e Rose, depois o carro do Carlos, com a Cita, Jorge e Cristina, atrás ia meu carro, com Zig, Martha e Aldo. Rose ia nos levar primeiro a Florianópolis, para mostrar a bela capital catarinense aos que não a conheciam, e visitarmos a praia da Galheta, onde a nudez é aceita. Marcamos de nos reencontrar no acesso à capital; de lá seguimos juntos até a Lagoa da Conceição, que contornamos chegando à praia Mole, onde tivemos de deixar os carros para seguir a pé, por toda a extensão dela, até atingir as pedras que a separam da Galheta.

O engraçado da cena era que fazia muito calor, a praia estava lotada de mulheres metidas em fios dentais e homens de sunguinhas apertadas, enquanto nós, naturistas, vestíamos bermudas e camisetas. Nos divertíamos comentando sobre o que poderiam estar pensando de nós aquelas pessoas todas, vendo-nos passear pela praia tão vestidos, sob todo aquele sol. O que não era engraçado, é que nenhum de nós tinha calção ou biquíni, a praia Mole é muito extensa e o calor era tanto, que não víamos a hora de ficar nus. Quando chegamos às pedras, fomos andando e despindo-nos; ao pisarmos nas areias da Galheta, já estávamos todos pelados e felizes.

Ninguém mais estava nu por lá, havia uma quantidade razoável de pessoas, principalmente argentinos; viramos atração turística, várias pessoas se aproximavam para pedir se podiam tirar fotos de seus amigos ou parentes no meio dos pelados. Atendemos a todos, divertindo-nos muito; um salva-vidas aproximou-se, quando alguns de nós entraram no mar, para alertar quanto aos pontos perigosos de correnteza, para que os evitássemos.

Um vendedor de cerveja descobriu que instalado no local onde estávamos, atrairia mais pessoas, que tivessem menos coragem de se aproximar, dando-lhes um pretexto e aumentando suas vendas. O Zig ainda fumava, por aquela época, e algumas garotas se aproximaram para pedir fogo, ficando por alguns instantes entre nós. Até um pobre tarado apareceu, instalou-se nas pedras, uns vinte metros atrás de onde estávamos, e na maior cara de pau, ficou nos observando ostensivamente; nós o percebemos, mas apenas desprezamos, por orientação da Rose. Depois de algum tempo, tornamos a vestir e partimos para Pedras Altas, onde estaríamos em nosso próprio meio.

Logo ao sul de Florianópolis, pela BR-101, fica Palhoça; passa-se o trevo de entrada da cidade e continua-se mais uns quinze quilômetros, até chegar ao acesso da Enseada do Brito. É um lugar muito bonito, uma enseada de grandes proporções, dentro do bolsão da Baía Sul, de frente para a ilha de Santa Catarina; nas águas, há diversos criadouros de mariscos, chamados fazendas, principal recurso econômico do local. Seguindo por uma verdadeira picada carroçável, uns dois quilômetros rumo leste; embora pareçam vinte, principalmente se tiver chovido, chega-se à área de Pedras Altas. No curto caminho, um verdadeiro desastre ecológico acontece impunemente; dezenas de famílias se estão assentando como posseiros de terrenos que vão demarcando a seu belo prazer, ao longo desta picada que margeia a enseada.

Derrubam árvores adultas e levantam casas de madeira ou alvenaria; há carros em todas elas. O pior, escandaloso até, é que a FATMA, órgão oficial de proteção ao meio ambiente do estado, tem a área toda decretada como de preservação ambiental, fazendo parte de um parque estadual; impedindo inclusive um grande projeto naturista para o local. Só que estas mesmas autoridades, fazem vista grossa para a atuação destes grileiros que estão destruindo a natureza dentro de uma área que deveria ser preservada, e construindo casas na faixa de domínio da Marinha. Como diriam no "Fantástico": "Isto é Brasil!"; infelizmente.

Pedras Altas é um local muito bonito, são duas praias contíguas mas pequenas, separadas por um pequeno rochedo; vê-se o lado sudoeste da ilha de Santa Catarina em frente. Ainda não há luz elétrica, nem bom suprimento de água, muito menos telefone; os mosquitos são um pouco mais vorazes que os do Pinho, embora só ataquem no entardecer. Como o acesso é bem difícil para carros de passeio, o melhor mesmo é vir por mar. Na Enseada do Brito, basta procurar um "fazendeiro" de mariscos e combinar o transporte por barco; pode-se deixar o carro no quintal de suas casas, passar a carga para o barco, e marcar dia e hora que deseje voltar. Normalmente, cobram um preço bem barato, mas alguns tentam explorar, avaliando pelo carro da pessoa, convém pechinchar. O passeio é inesquecível, de tão bonita que é a região.

Depois de desfrutarmos o local e almoçarmos, convidei a Rose para pintá-la; o trabalho resultou magnífico, era como a frente de um belo maiô. Enquanto terminávamos este trabalho, no entardecer, um esquadrão de mosquitos nos atacou, tornando muito difícil continuar ali, ao ar livre e sem repelente. Assim mesmo, conseguimos terminar a obra e tirar algumas fotos, antes de fugir.

Antes do final da tarde, o carro do Paulo já tinha partido de volta para o Pinho, levando Deise, Cida e Zig; era dia do aniversário da Paula, Cida ia à frente, para começar a organizar uma festa surpresa. Eu e Rose voltamos com Martha e Aldo, passaríamos por alguma confeitaria em Florianópolis, no caminho, para comprar uma torta e alguns docinhos. Carlos, Cita, Jorge e Cristina seguiríam direto.

Eu me vesti por inteiro para dirigir, com bermuda, camiseta, tênis e meias, Rose viajava ao meu lado, vestida com uma toalha sobre a pintura; no assento traseiro, Martha estava vestida com sua canga, como se fosse um sari, e Aldo estava enrolado numa toalha. Rose sugeriu uma excelente confeitaria na Baía Norte. Estacionei no recuo, em plena área comercial da belíssima avenida, região nobre da cidade; eram aproximadamente nove horas da noite quente de domingo, havia muita gente passeando pelo calçadão comercial, ou nas mesinhas das sorveterias e bares. Eu e Martha nos dirigimos à confeitaria, onde duas jovens senhoras e uma garota, filha de uma delas, nos dispensaram simpática atenção.

O caso é que tanto Martha, como eu próprio, somos desinibidos para falar, e logo estávamos em papo animado com as três; quando pedimos para reforçarem as embalagens, por causa da viagem até o Pinho, a mãe da mocinha interessou-se:

- Praia do Pinho? Por acaso não é aquela de, de...

- Esta mesma! - antecipou-se Martha - A de nudistas. Nós somos nudistas, viemos passar o dia em Pedras Altas, agora estamos voltando, para celebrar o aniversário de uma amiga que mora lá.

- Que barato! - exclamou a mulher, enquanto sua filha e a outra mulher se aproximavam curiosas, interessadas no rumo que a conversa tomara - Tenho muita vontade de ir até lá, conhecer.

- Seria ótimo, vocês adorariam, com certeza. - acrescentei animado, Martha também parecia orgulhosa, a meu lado; continuei - Eu, por exemplo, sou pintor, pinto sobre o corpo humano na praia; agora mesmo, tenho uma amiga pintada por mim, em meu carro, aí fora...

Era o golpe de misericórdia na curiosidade das três mulheres, que praticamente imploraram para ver. Não nos fizemos de rogados, levamos as três para fora, só que não esperávamos o que aconteceu ao deixarmos a loja. Elas encontraram algumas conhecidas no calçadão, e chamaram-nas para acompanhá-las até o carro, anunciando o que estavam por ver.

Rose e Aldo foram pegos de surpresa, estavam completamente distraídos conversando e estranhando nossa demora. Abri a porta do lado da Rose, acendendo-se a luz interna; as mulheres amontoaram-se para ver, pedi a Rose que abrisse a toalha por um momento. Foi um sucesso, apanhei os álbuns com as fotos de minhas outras pinturas anteriores, já eram onze só no Pinho, e entreguei para que vissem. Todas queriam aproximar-se para ver de perto a pintura em Rose e as fotos das outras pinturas. Foi difícil nos desvencilharmos para prosseguir viagem, com os acenos daquela gente, que certamente nos adorou. No caminho, nos regozijamos pelo evento.

Na chegada ao Pinho, Paula já estava dormindo; o pessoal havia decorado o Tijolo Doido com bolas coloridas, arrumamos a torta e os docinhos sobre as mesas, enquanto a Rose foi à casa da aniversariante, acordá-la, sob o pretexto de mostrar-lhe a pintura. Como combinado, ela lastimou o fato de termos ido passar o dia em Pedras Altas esquecendo seu aniversário, que acabara de lembrar; Paula desculpou, dizendo que não tinha importância, mas a Rose insistiu, convidando o casal a um brinde com uma cerveja geladinha. Disse-lhes que ia na frente, para acender a luz e abrir a cerveja. Quando Paula e Celso chegaram ao restaurante, encontraram a festa surpresa. Curtimos algum tempo juntos, o assunto principal era o acontecimento de Florianópolis; mais tarde, cansados pelo dia intensamente vivido, fomos todos dormir.

Na manhã seguinte, desci muito cedo para a praia, junto com o Zig, que levou consigo um daqueles tesourões de jardinagem, novo e bem afiado; o carnaval começaria no final de semana seguinte, e era necessário cortar um pouco da vegetação rasteira que avançava para a areia, junto à portaria, no local onde deveríamos fincar as novas bandeiras da AAPP e da FBN. A praia ainda estava quase deserta àquela hora, umas nove horas mais ou menos; chegamos à portaria, onde já estava o Elton, um rapaz de Santos, que estava passando as férias lá. Ele é um dos que preferem deixar de curtir a praia para ajudar na recepção, o Zig foi ao restaurante buscar as cadeiras, guarda-sol e mesinha que lá ficavam guardados, deixando o tesourão comigo. Eu estava de costas para o mar, contando ao Elton sobre o passeio do dia anterior. Além de um casal com crianças, que brincavam na areia, poucos metros além da divisória, podia-se contar menos de meia dúzia de pessoas até o final da praia. Subitamente, o Elton, que estava de frente para mim, e para o mar, alertou:

- Roberto; olha p'raquilo!

Voltei-me, e pude ver que, das pedras que separam aquele setor da praia, da outra prainha aos pés do morro da Tartaruga, acabara de surgir um casal, que não havíamos visto, eu e Zig, ao passarmos por lá; provavelmente porque estivessem escondidos entre as pedras junto ao mar. A mulher caminhava pelo lado da água, o homem à sua direita, com o braço esquerdo sobre seus ombros; estavam os dois nus, e conversavam animadamente, enquanto se dirigiam para a divisória, e para a família que lá estava. Do modo como iam, o homem não nos via, apenas a mulher, e tudo estaria absolutamente em ordem, se o pronunciado rebolado proposital dos passos do homem, não evidenciasse ainda mais a descomunal dimensão e o total estado de entumecimento de seu membro, demonstrando seu orgulho em mostrá-lo daquela maneira.

A situação não podia ter sido melhor programada pelo destino, o flamante tesourão estava em minhas mãos, parti em direção a eles, fazendo careta de mau, enquanto abria e fechava o podão. A meio caminho, vi que a mulher percebera minha aproximação e assustara-se pelo que parecia ser minha intenção; o respeitável instrumento do rapaz, de fazer inveja a qualquer ator de cinema pornô, balançava orgulhosamente de um lado para o outro, quando ela chamou a atenção dele para mim. Ao voltar o rosto para a direita, e ver-me já tão perto, ouvindo o ruído das lâminas se roçando, seu susto foi visivelmente tão grande, que ao mesmo tempo que empalideceu por completo, como num passe de mágica, todo o volume de seu membro desapareceu, murchando em segundos. Cheguei com dureza:

- O que é isto; 'tá pensando que isso aqui é uma casa de shows eróticos? Não estão vendo aquela família ali adiante; que pouca vergonha é esta?

- Eu não estou fazendo nada de mal!

- Ah, não está?! Você gostaria de estar ali, com sua família, e de repente aparecer um tarado qualquer de pinto duro, p'rá se exibir diante de sua mulher e suas crianças?

- Essa praia tem muita frescura p'ro meu gosto...

- Ótimo! Se não estão gostando daqui, nós também não fazemos questão de sua presença; aquele portão é serventia da praia!

- Muito bem; nós vamos embora desta merda! - e saiu puxando a mulher de arrasto pelo pulso até o estacionamento, embarcaram no carro e saíram levantando poeira.

O carnaval chegou, infelizmente com muita chuva por toda a região sul; o mau tempo começou exatamente na manhã de sábado, e o sol só voltou a brilhar no final da tarde da terça feira gorda, quando pelo menos dois terços de todos os que tinham vindo, já haviam partido desesperançosos durante o domingo e a segunda feira. Todas as noites, o Tijolo Doido lotava na hora da previsão meteorológica do noticiário da TV, que não alegrava ninguém.

Apesar do mau humor de São Pedro, que não quis brincar o carnaval no sul, os naturistas que ficaram, aproveitaram para conviver mais; fiz quatro pinturas, em mulheres que ousaram enfrentar o frio e a umidade para enfeitar-se para os mini-bailes que aconteceram todas as noites dentro do bar do Yvan, na praia. Duas delas acabaram fantasiando-se com pinturas muito bonitas, Graziela, de Curitiba, que eu pintava pela segunda vez, e Maria da Graça, de Porto Alegre; ambas fizeram tanto sucesso, que o Jarbas queria a todo custo levar Graziela vestida apenas com a pintura, para um baile de carnaval em Itajaí, sorte que conseguimos demovê-lo da idéia.

Uma noite, nos reunimos no varandão, para uma experiência comandada pelo Jorge, éramos umas quinze pessoas. Iniciamos por relaxamento e mentalização; depois, cada um deveria descrever, o mais fielmente que possível, seus primeiros momentos no Naturismo. Acabou sendo muito mais divertido do que poderíamos supor, as dramáticas confissões tornavam-se tão hilárias, que nos tornamos ainda mais conscientes de que nós, seres humanos, não temos nada de que nos envergonhar, uns em relação aos outros.

Leo Buscaglia, um dos mais importantes mestres da psicologia moderna, afirmou que a maior parte das pessoas, vai passar o tempo todo tentando mudar as pessoas que a cercam, e geralmente em nome do amor.[10]As pessoas são levadas a crer, que devem agir conforme as expectativas do grupo social a que pertencem; ninguém é estimulado a assumir suas próprias características de personalidade, mas a envergonhar-se delas, tentando seguir, ou ao menos aparentar modelos preestabelecidos de comportamento. Este procedimento, infelizmente tão comum, é na verdade o maior responsável pelas neuroses, frustrações, paranóias e insegurança, que deixam lotadas as agendas dos psicanalistas, por todo o planeta. As pessoas, ainda seguindo o pensamento de Buscaglia, passam pela vida sem vivê-la realmente, e morrem sem ter vivido plenamente, tão ocupadas que estão, o tempo todo, em parecer o que não são, e esconder o que são, para satisfazer aos outros, nunca a si mesmas.

A felicidade, cantada pelos poetas, e sonhada por todos, jamais será alcançada através de um grande prêmio de loteria, nem de uma roupa nova, viagens pelo mundo, palacetes decorados com suntuosidade, carros de último tipo, iates, aumentos de renda, nem muito menos ao encontrar o príncipe, ou princesa encantados; ela está atrelada ao auto-conhecimento e aceitação, à paz interior.

É o mais simples e perene dos sentimentos, basta que nos vejamos no espelho como realmente somos, que respeitemos nossas próprias vontades e aspirações, que sejamos autênticos e estimulemos os que amamos a fazer o mesmo; pois é respeitando-se a si próprio, que se poderá respeitar aos outros, amando-nos, amaremos nossos semelhantes, convivendo em paz consigo mesmo, o ser humano encontrará a paz do convívio social.

Numa manhã de sábado, trabalhando na portaria da praia, vi chegar um carro dirigido por uma mulher jovem e muito bonita, com ela estavam quatro meninas, de idades entre nove e quatorze anos; ela tentou estacionar bem em frente à entrada, onde pedimos que ninguém estacione, para deixar livre o acesso. Aproximei-me, para pedir que mudasse para outro local; com simpatia, ela pediu-me para deixá-la descarregar ali toda a tralha que trouxera, como cadeiras, guarda-sol, geladeirinha, toalhas e bolsas, além das próprias meninas que a esperariam ali, enquanto mudava o carro de lugar.

Ajudei-a a descarregar e estacionar o carro, ela contou-me que estava ali pela segunda vez, tinha vindo alguns dias antes, sozinha; segundo ela, o marido vinha de muito tempo recusando vir com ela conhecer o Naturismo. Disse viver em Blumenau, e que três das meninas eram suas filhas, a outra era filha dos zeladores do prédio onde moram. Míriam, seu nome, disse ter cansado das recusas do marido, que terminara dizendo-lhe que fosse sem ele, pois acreditava que não se sentiria bem. Ela decidiu fazê-lo, e foi sozinha durante a semana; gostou tanto, que quis voltar com as meninas, e o marido concordou.

Algumas horas depois de terem entrado, eu havia deixado a recepção, e mostrava as fotos de minhas pinturas para algumas pessoas, quando uma de suas filhas se aproximou, dizendo-me que sua mãe pedira para também vê-las; emprestei-lhe os álbuns e acompanhei a menina com os olhos, para ver onde estavam instaladas, a praia estava lotada. Depois de alguns minutos, aproximei-me para indagar como estavam se sentindo as meninas, em sua primeira experiência naturista; elas fizeram questão de dizer, quase em coro, que sentiam-se bem, por ter desmanchado, em tão poucas horas, toda a visão maliciosa do corpo humano, que o meio social em que viviam já lhes havia incutido.

Elas pareciam passarinhos, de tão felizes e saltitantes; a mais velha, chegou mesmo a comparar-se a um passarinho, que pela primeira vez tivesse alçado vôo para fora de sua gaiola dourada, acima dos jardins floridos. O tom poético das palavras da jovem adolescente foi logo explicado, quando conversei com Míriam e soube que era uma poetisa, com livros publicados e tudo; a filha seguia os passos da mãe.

Finalmente, perguntei a Míriam como estava assimilando tantas e tão rápidas transformações, em si mesma e nas filhas; sua resposta foi rápida e expontânea, mas sintetizou toda a idéia naturista:

- "Sinto-me como se tivesse despido minhas roupas, para vestir-me de mim mesma".

Outra grande amizade nascida no Pinho nesta temporada, é a de Erivan, carioca da gema, membro atuante da RIO NAT, associação oficial de Naturismo do Rio de Janeiro. Através dele, numa visita que fiz posteriormente ao Rio, vim a conhecer Sérgio Oliveira vice-presidente da FBN, na época também presidente da Rio Nat. Na casa de Sérgio, conheci também seu filho e sua encantadora esposa, Rose.

Passado o carnaval de 1993, o sol voltou ao Pinho, e os que passavam as férias de fevereiro puderam aproveitar para tirar o mofo dos dias de chuva, em que quase viramos sapos. Finalmente, chegou o dia vinte e cinco, aniversário de meu pai; eu prometera e queria estar com ele em Porto Alegre, mas era difícil afastar-me do paraíso, depois daquelas três semanas; muitas outras estavam por vir, e não era menos difícil pensar que teria que voltar a vestir-me para sair de casa todos os dias, ou mesmo para atender à porta.

A volta, dolorosa, teve seu aspecto engraçado; dias antes, na praia, conheci duas garotas de Porto Alegre, Tetê e Mari, elas estavam sem lugar para ficar, bem como sem ter como voltar para casa, pois tinham vindo de carona com alguém, à frente de uma turma que seguiria no carnaval para juntar-se a elas, de carro e com barracas. Os primeiros dias, passaram na pousada do Álvaro, quando o carnaval chegou bem molhado, seus amigos desistiram da viagem, deixando-as à própria sorte, com poucos recursos. Elas foram se arranjando como puderam, dormindo aqui ou ali, até que as conheci, e levei-as para dividir o quarto da pousada comigo, pois uma segunda pessoa já estaria incluída no preço das diárias que pagara, e o acréscimo para uma terceira ficava ao alcance delas.

Saímos do Pinho no meio da manhã, por volta das nove horas, Tetê viajava no assento traseiro do azulão, reclamando das queimaduras nos seios, pois havia negligenciado o sol dos últimos dois dias; o tecido grosso da blusa roçava a pele queimada, eu a aconselhei a despi-la, uma vez que estava atrás, pois sendo uma mulher pequena, não haveria possibilidade de ser notada de fora. Só que uma hora depois, quando passávamos pelo acesso de Florianópolis, vi um soldado da polícia militar de bolsa em punho, pedindo carona; sem avisá-la, distraidamente parei o carro no acostamento e esperei que o rapaz se aproximasse vindo por trás. Estávamos conversando animadamente e não paramos, assim, nenhuma das duas entendeu o porque de eu haver parado, nem tiveram tempo de indagar; o policial debruçou-se na janela de Mari, e perguntou se passaríamos por Garopaba, curvei-me sobre ela e abri a porta, pedindo-lhe que desse passagem a ele.

Neste momento, voltei-me para trás, para vê-lo acomodar-se ao lado de Tetê, e só então lembrei-me, vendo, que ela estava nua da cintura para cima, e paralisada com um ar totalmente perplexo. Ainda atônita, ela moveu-se para trás do meu assento, dando lugar ao policial, que tentava não olhar para o peito da moça; na frente, Mari ria-se o quanto podia. Enquanto voltava à estrada, percebi a tensão no rosto do rapaz, pelo retrovisor. Então quebrei a tensão, dizendo-lhe que vínhamos do Pinho, e que éramos naturistas; nem seria preciso muita explicação para a seminudez de Tetê, pois as queimaduras eram evidentes.

O policial sorriu mais tranqüilo, e nos disse que em outra temporada, já tirara serviço na praia do Pinho, que gostara muito de lá, bem como das pessoas. Em poucos minutos ele ficou tão à vontade, que já não mais olhava insistentemente para o peito da garota, e quando chegamos a Garopaba, pouco depois do meio-dia, insistiu muito para que fôssemos almoçar com ele, na casa de seus pais, que estavam preparando um prato típico com camarões para esperá-lo; polidamente recusamos e nos despedimos. Tetê não se continha, disse que era a primeira vez em sua vida, que viajara seminua, batendo papo com um policial fardado, e por uma movimentada rodovia. Coisas da naturalidade.

No meio de março voltei ao Pinho, desta vez de ônibus, amarga experiência; saí de Porto Alegre às onze horas da noite, e quase não consegui pregar os olhos por toda a noite. O ônibus parou na rodoviária de Osório por quinze minutos, acenderam as luzes, entraram passageiros muito barulhentos, era toda uma família que ia a um casamento em Curitiba; depois parou novamente no posto de pesagem na BR-101, e mais uma vez em Torres, onde pegou mais passageiros. A família de Osório vinha num papo animado, a despeito de já serem quase duas da manhã, falavam alto de um assento para outro, riam e trocavam de lugares.

Já em Santa Catarina, parou por meia hora no Japonês, em Sombrio; eu tinha conseguido pegar no sono poucos quilômetros antes, quando a família sossegara, depois das reclamações de alguns passageiros, indignados como eu. Uma hora depois de deixar a lanchonete, o motorista conseguiu bater, sorte que de raspão, com um caminhão que vinha em sentido contrário; o barulho foi forte, mas os poucos estragos resumiram-se ao espelho retrovisor destruído, e a lateral esquerda toda arranhada, mais o braço esquerdo do motorista, atingido pelos estilhaços do espelho.

Ele não parou o ônibus, e quase ninguém pode entender o que se passara; só quando chegou à garagem da empresa, em São José, é que fomos perceber que ele tirara a gravata e a enrolara pelo braço para estancar o sangue. Tivemos que esperar por um substituto, perdendo quase uma hora ali; quando o ônibus parou, às oito da manhã, na rodoviária de Balneário Camboriú, nem acreditei que havia chegado, com os olhos vermelhos, morrendo de sono. Zig veio pegar-me, com o velho TL que a AAPP possuía, mais tarde vendido ao Beto, administrador de Pedras Altas.

O final de semana foi ótimo, não havia muita gente, como durante os meses de férias, mas o sol até que levou bastante gente à praia. Aproveitei para conversar bastante com o Celso, meu sonho era deixar tudo, para dedicar-me ao Naturismo; ele me dizia que seria uma valiosa participação, mas que se julgava uma puta velha (sic), explicando que quando uma mulher inicia-se na prostituição, costuma acreditar nas juras de amor e promessas de casamento que os primeiros clientes lhe fazem na cama; com o tempo, desiludida, passa apenas a fingir que acredita, como finge os orgasmos, para satisfazer a clientela, impermeável ao que ouve. Ele contou-me, que muitos já haviam chegado com juras e promessas como as minhas, nas quais ele havia acreditado até cansar, e que agora preferia dar tempo ao tempo.

Na Páscoa, estava programado para voltar ao Pinho de carro, não queria correr o risco de outra viagem incômoda, como a de março; decidi sair de Porto Alegre, na madrugada da quinta feira, para ganhar um dia a mais nos feriados, compensando a viagem. Ia só, seria até uma viagem um tanto aborrecida, mas não me importava com isto, chegando lá, encontraria muita gente interessante.

Na tarde de quarta, estava no escritório da companhia de turismo onde trabalhava, quando recebi uma chamada de Conceição, uma grande amiga, prima da esposa de um primo meu, dona de uma pequena agência de viagens; ela tinha acabado de tratar com o departamento de reservas, sobre umas clientes dela, que viajariam conosco para o Canadá, das quais por pura coincidência acabei sendo o guia nesta viagem, meses depois. Ela pedira que a transferissem para mim, para saber novidades e conversarmos um pouco; lá pelas tantas da conversa, ela perguntou-me:

- E o que é que você pretende fazer nestes feriados?

- Ah! Eu estou indo para o Pinho, aquilo lá é o verdadeiro paraíso; já será minha terceira viagem para lá, volto sempre com as baterias recarregadas. Vou amanhã de madrugada, e só volto segunda de manhã, vou enforcar a quinta e a segunda; e ainda vou voltar bronzeado, pois a previsão da meteorologia é das melhores para os próximos dias.

- É mesmo? Que legal! E, onde fica?

- Junto a Balneário Camboriú, é um lugar belíssimo, abençoado pela natureza.

- Puxa, que legal. Eu bem que estava precisando ir para um lugar assim, esta trabalheira toda, por causa da mudança da agência para o prédio novo, está me esgotando.

- E porque você não vem comigo? Não precisaria nem mesmo gastar dinheiro, pois eu estou indo de carro sozinho, e as diárias da pousada onde vou ficar incluem uma segunda pessoa, sem necessidade de pagamentos adicionais; acho que nós dois somos suficientemente amigos para podermos compartilhar um quarto, você só iria gastar para comer, e nisso nós podemos rachar as despesas, tudo lá é muito barato.

- Sabe que eu acho que vou aceitar seu convite; me dá alguns minutos para pensar, e ver se minha irmã pode tomar conta da agência nestes dias sem mim. Já te ligo de volta. Tchau!

Cerca de quinze minutos depois ela ligou:

- OK! Vou com você! A que horas você vai sair, e como faço p'rá te encontrar?

- Vou sair por volta de cinco e meia da manhã. Te ligo quando for sair de casa, e você desce para me esperar na portaria de teu prédio. Está bem?

- Certo! Vou estar pronta quando você chegar; até amanhã!

Quando parei o carro na calçada em frente ao prédio onde ela morava, e a vi aparecer sorridente na portaria, carregando uma mala quase maior do que ela, achei muito estranho; corri até lá para ajudá-la com o guarda-roupas, sentindo que estava bem pesado. Pensei que fosse uma daquelas pessoas que só viajam levando de tudo, por via das dúvidas; mas não quis ser intrometido, guardei-a no porta-malas e entramos no carro.

Ao longo de toda a "free-way" e da estrada do mar, por cerca de duas horas, viajamos tranqüilos, conversando animadamente sobre muitos assuntos; apreciamos o nascer do dia, que estava muito bonito, e realmente falamos bastante. Ela viajava sentada de lado, com a perna esquerda dobrada sobre o assento, e as costas apoiadas na porta do carro; o velho azulão não andava a mais de cem, por isso seguíamos numa marcha regular, pelas estradas desertas. Quando atravessamos o rio Mampituba, entrando em Santa Catarina, ainda nos despedimos do Rio Grande, antes de ficarmos em silêncio por alguns minutos; Conceição recomeçou:

- Agora, me fala um pouco deste lugar para onde estamos indo.

E eu falei, fiz o maior discurso empolgado sobre o Pinho e o Naturismo; mas à medida que ia falando, os olhos dela se esbugalhavam, e ela foi-se empertigando toda. Percebendo seu estado de espanto, sem entender a razão, pois tinha dito na véspera que estava indo para o Pinho, e acreditava que todo mundo soubesse o que havia lá; parei o discurso, e perguntei-lhe:

- Você não sabia que nós estávamos indo para uma praia de Naturismo?

- Não!

- Mas eu lhe disse ontem, quando você perguntou o que eu ia fazer nos feriados.

- Acho que não ouvi, ou não entendi, nem sei; mas eu não sabia, juro.

- Tudo bem; então é por isso que você trouxe uma mala tão pesada, agora entendo. Mas não tem problema, vou dar a volta e te levar à rodoviária de Torres, antes do meio-dia você estará de volta em casa; eu realmente sinto muito, julguei que você tivesse me ouvido dizer para onde ia.

Disse isto, enquanto diminuía a marcha e saía para o acostamento, para dar a volta, estávamos ainda muito próximos de Torres. Ela pegou meu braço direito, que manejava a alavanca de câmbio, e disse:

- Não! De jeito nenhum! Agora que você me falou todas estas maravilhas sobre este lugar, quero ao menos conhecê-lo; se não gostar, posso voltar de lá. Você se importa?

- Claro que não! Depois, acredito que você irá gostar, e vai querer mais é ficar por lá.

- Vamos devagar; agora me fale mais sobre o Naturismo.

Chegamos ao Paraíso da Tartaruga por volta da uma hora da tarde. Apresentei Conceição ao Celso e à Paula, e nos instalamos no mesmo quarto que eu usara nas outras vezes, o segundo, da direita para a esquerda, no andar de cima; perguntei a ela se ia incomodar-se de eu andar nu a seu lado, ela respondeu que não, mas não queria tirar suas roupas tão cedo. Saímos para almoçar no Tijolo Doido, depois fomos dar uma caminhada pela área; mostrei-lhe as casas, o camping com a cozinha comunitária e o banheiro, e descemos até o platô, onde ela se encantou com a vista. Perguntei-lhe, se gostaria de ir então para o Balneário, pegar um ônibus para casa, ela respondeu que não; gostaria de ficar até a manhã seguinte, pelo menos, quando tentaria despir-se na praia, se eu não me importasse.

Levei-a à secretaria da AAPP, para mostrar-lhe as publicações naturistas de diversos países que havia lá, e assim passamos o restante da tarde. Ao anoitecer, deixei que ela fosse tomar seu banho sozinha, para não constranger-se, só que o chuveiro não esquentou e ela teve de chamar-me, enrolando-se na toalha; chamei o Zig e ele consertou o aquecedor, subi de volta para o quarto, deixando-a à vontade, mas logo o Zig voltou, para perguntar-lhe se tinha ficado bom. Ele entrou no banheiro e falou com ela; minutos depois, já vestida no quarto, disse-me que levara um grande susto, mas que tinha sido bom, pois aos poucos, conversando nua com aquele alemão, também nu, tinha sentido-se relaxar.

À noite, começou o movimento de chegada de pessoas, dando o prenúncio de que haveria bastante gente por lá naqueles feriados; jantamos e fomos dormir cedo, devido à hora que tínhamos acordado para viajar.

Acordei cedo e desci para o banho, quando voltei já encontrei Conceição com seu "necessaire" à mão, pronta para descer; disse-lhe que a esperaria no restaurante, para o café da manhã. Ela me perguntou como poderia fazer para vestir-se de modo a poder descer para a praia, sem estar ao mesmo tempo vestida; aconselhei-a a usar uma das minhas camisetas sobre o corpo nu, pois muita gente desce para a praia assim, despindo-se na areia. Minha camiseta ficaria um vestido nela, se ao chegar à praia, não tivesse coragem de despi-la, eu a levaria à rodoviária. Mais tranqüila, desceu para o banheiro.

Por todo o final de semana, São Pedro foi generoso, com um céu de brigadeiro até a tarde de domingo, quando foi nublando aos poucos, começando a chover ao anoitecer. A praia estava tão movimentada, que só naquela sexta feira, realizei três pinturas. Apresentei Conceição a várias pessoas que estavam por perto de onde nos instalamos, em frente ao bar do Álvaro, e comecei a pintar a Lene, uma moça loura de Rio do Sul, que estava com o marido, Muty, uma das pessoas mais gaiatas que já conheci, sempre fazendo todos se divertirem muito com piadas e picardias; uma de suas anedotas mais engraçadas, envolvendo naturismo, era sobre o Pinho, mais ou menos assim:

"Um casal chega ao Pinho pela primeira vez, sem qualquer experiência naturista anterior, trazem consigo o filho de nove anos; são recebidos na portaria, onde recebem todas as instruções sobre o funcionamento da praia; muito encabulados e um pouco assustados, decidem tentar, apavorados despem-se e correm para a água. Um pouco mais calmos, depois de alguns minutos vêm para a areia, onde armam o guarda-sol e as cadeiras, sentando-se para tomar um pouco de sol, enquanto percebem que não estão chamando a atenção, ao contrário do que haviam imaginado. Então ficam mais tranqüilos e passam realmente a desfrutar as sensações de liberdade e paz.

A mulher lembra-se dos conselhos recebidos na portaria, e besunta-se toda com o protetor solar, indo deitar-se sobre sua toalha, onde acaba pegando no sono. Um pouco adiante, de suas cadeiras, pai e filho observam tudo em volta; de repente, o menino puxa o pai pelo braço, para mais perto de si, e sai com essa:

- Paiê!

- Que é, meu filho?

- Porque é que uns homens têm peruzinhos tão pequenos, e outros tão grandes?

O pai, atônito, não fazia idéia de como responder ao filho. Sem querer passar por ignorante, nem causar algum complexo ao menino, decidiu sair por uma tangente.

- Bem, meu filho, a questão é puramente econômica; os que são pobres, têm peruzinhos pequenos, já os ricos, os têm grandões.

O menino apenas ficou em silêncio, pensativo, olhando em volta. Depois de algum tempo, o homem pede ao filho que fique fazendo companhia à mãe, para que ele vá tomar umas cervejas no bar. Passada uma hora ele volta, encontrando o menino só; olha em volta, não vê a esposa, e pergunta ao filho:

- Onde está sua mãe?

- Bem, papai, nós estávamos aqui conversando, quando chegou um cara bem pobre e pediu licença p'rá sentar na beira da toalha da mamãe. Enquanto conversava com ela e eu não escutava o que eles diziam, resolvi ir até o mar. Quando voltei, vi que o moço devia ter acertado na loteria, porque ele 'tava muito rico; então a mamãe pediu p'rá eu ficar aqui, e foi com ele lá p'rá trás daquelas pedras..."

Enquanto pintava Lene, escutando as gaiatices do Muty e do Carlos, um paulista que acabara de conhecer, também muito gozador, cuja esposa Deise conversava com Conceição atrás de onde eu estava sentado, voltei-me para vê-la e perguntar-lhe se ia ficar, ou queria partir. Qual não foi minha surpresa ao ver que já se havia despido, e estava envolvida num papo dos mais animados com a nova amiga.

Depois da pintura da Lene, que permaneceu pintada por todo o dia, foi a vez de Simone, de Curitiba; uma esguia morena de cabelos negros e longos, que faz curso superior de música, sendo cantora profissional, e tão apaixonada pela música, que lhe fiz uma clave de sol nas costas. Finalmente foi Maria, também de Curitiba.

Eu a conhecera no dia oito de fevereiro, quando terminava a primeira pintura de Graziela; ela estava esperando o almoço, no bar do Álvaro, a pintura estava pronta e ela já estava até vestida com sua canga, pois ia embora para Curitiba logo depois de comer. Eu tinha estado tão distraído pintando que não percebera sua presença; aliás, pelo visto tinha andado tão distraído ultimamente, que não a tinha percebido nos três dias anteriores, desde que eu chegara. Ela estava virada em nossa direção, torcendo o corpo na cadeira que ocupava; admirava a pintura no corpo de Graziela, quando meus olhos a viram pela primeira vez.

Pedi-lhe que viesse sair em algumas fotos conosco, ela levantou-se, despiu a canga e veio ter comigo e Graziela em frente ao bar; quando chegou sorridente, dando-me as duas mãos para segurar, o mundo rodou em torno de minha cabeça, e o coração parou. Eu não sabia o que fazer, com as mãos dela nas minhas; até que, depois de alguns segundos, que pareceram uma eternidade, senti que conseguia reassumir o controle da situação, neste momento abri os olhos com alívio, e ao vê-la sorrindo também sorri. Alguém estava com minha câmera, e registrou este exato instante, eternizando-o.

Só tivemos tempo para as fotos, e ela voltou ao bar para almoçar rapidamente, pois sua carona já estava de partida; pedi que me desse seu endereço, que ela anotou num guardanapo e entregou-me antes de desaparecer prometendo voltar para o carnaval, mas não voltou.

Agora, ali estava ela, com sua amiga Ana, uma pessoa também incrível, com quem compartilha um apartamento e uma barraca na feira de artesãos do Largo da Ordem, aos domingos em Curitiba. Ela queria ser pintada, já eram mais de três da tarde quando comecei; foi muito difícil, uma das pessoas que mereceria a mais linda pintura que eu pudesse realizar, terminou recebendo um trabalho quase medíocre, pois as emoções que experimentava não me permitiam concentração suficiente para fazê-lo.

Lene e Simone ainda estavam pintadas, tive apenas de fazer-lhes alguns poucos retoques para poder fotografar as três juntas; foi a primeira vez que isto aconteceu, felizmente pude registrar em fotos.

Mais uma vez, a passagem de Maria pelo Pinho fora meteórica, tornou a desaparecer rapidamente. Tempos depois, entendi que sua personalidade magnética ilumina os corações à sua volta, deixando as pessoas encantadas; no dia em que percebi isto, escrevi-lhe uma carta, comparando-a a um colibri, que surgia da mata para vir sugar a glicose do bebedouro em minha janela florida, e que depois de alegrar meu coração com sua presença, voava feliz de volta à mata e a outras janelas.

- Voa livre, colibri!

Conceição adorou a praia, e as pessoas que conheceu; subiu antes de mim. Quando cheguei no fim da tarde, já estava de banho tomado, entrosada em conversa animada no varandão com outras pessoas. O dia seguinte seria da grande gincana da Páscoa, voltamos a dormir cedo, para descansar do dia tão cheio.

A gincana foi um sucesso, a equipe da qual participei venceu a competição nas categorias infantil e geral. Na prova de escultura na areia, eu e Valtinho, um amigo de São Paulo, idealizamos uma maqueta em areia do morro da Tartaruga, a criançada ajudou a realizá-la. Outra prova, exigia uma interpretação teatral de um tema naturista, pensei na peça que engavetara no verão, mas não haveria tempo para ensaiá-la, por isso bolamos outra história; pintamos biquínis e calções em todos os que participariam, eram quatro meninos, oito meninas, cinco moças, três rapazes e eu, que não usava nada, pois fazia o papel de um naturista que recebia todo aquele grupo de visitantes, pretensamente não naturistas, na praia do Pinho.

Depois de mostrar-lhes a praia e falar-lhes sobre o Naturismo, respondendo a várias perguntas do grupo, que tentava desabonar nossa filosofia, eles desobedeceram meus pedidos para despirem-se antes de entrar na praia, correndo todos para a água, onde brincaram felizes por alguns minutos, enquanto eu os chamava de volta. Ao saírem da água e perceber que estavam nus, a princípio chocaram-se, mas logo acostumaram-se à idéia; e, junto comigo, celebrávamos cantando o refrão de Raul Seixas:

-"Viva! Viva! Viva a sociedade alternativa!"

Mas foi no domingo de Páscoa, que aconteceu o fato mais inusitado de todos, algo realmente incrível. Na véspera, havia chegado à praia uma jovem, aparentemente com uns vinte anos de idade, simpática e muito bonita, de olhos verdes e pele jambo; ela viera só, contou-me que era de São José do Rio Preto, e que estava hospedada num pequeno hotel no Balneário, juntamente com os pais, irmãos, e muitos vizinhos, amigos da rua onde moravam, que haviam fretado um ônibus de turismo, para virem em caravana conhecer Blumenau e Camboriú.

Explicou-me que tinha lido e assistido muitas reportagens sobre o Pinho, tendo decidido vir conhecer a praia sozinha; deixara todos no Balneário, e viera de ônibus de linha até o Estaleiro, seguindo as informações que conseguiu, prosseguindo a pé até lá. Pediu até ajuda para conseguir uma carona de volta no final da tarde; tomou parte na gincana, fazendo muitas amizades, e conseguindo a carona de volta.

Cedo, na manhã do domingo, um carioca que é antigo freqüentador do Pinho, e naturista roxo, o Carlos Moraes, foi cumprir um ritual que repete há anos neste dia, o de esconder ovos de chocolate pela mata, no Paraíso, para que a criançada procure, ao acordar. Eu tinha pulado da cama cedo, e esperava pelo café da manhã, no varandão, quando o Maurino chegou ofegante, anunciando que tivera de deixar seu carro lá fora, na estrada das praias, pois um imenso ônibus de turismo havia encalhado na entrada do acesso ao Paraíso, ao tentar entrar. O motorista não podia movê-lo para a frente, nem de volta para trás, pois estava entalado na terra; alguém tinha partido em busca de socorro, mas voltara dizendo que só por volta do meio-dia um trator viria tirá-lo dali. Ficamos todos intrigados pela presença de tal ônibus, mas ninguém mencionou nada sobre passageiros.

Quando mais tarde, cheguei à praia, a grande surpresa, todos os passageiros do ônibus, inclusive o motorista, estavam peladinhos, desfrutando as delícias do dia ensolarado no Pinho, misturados aos freqüentadores habituais. Não era nada mais, nada menos, que a caravana de São José do Rio Preto, com a moça da véspera, sua família, e todos os vizinhos; ela tinha contado tantas maravilhas sobre o Pinho a todos, que resolveram dar uma passadinha por lá pela manhã, para espiar a praia antes de partir de volta para casa. Como o ônibus era de três eixos, muito grande, e ela errou o caminho, indicando a entrada do Paraíso ao invés da descida para a praia, e eles tivessem de ficar lá por algumas horas, ela os levou a pé, e todos resolveram aderir à nudez da praia.

Um casal de velhinhos me procurou, trazendo uma menina de uns cinco anos de idade, pois tinham ouvido falar de minhas pinturas, e a menina queria um coelhinho pintado no peito; pintei a cara de um coelho, com a inscrição FELIZ PÁSCOA. Ainda guardo a foto que tirei dela, toda prosa exibindo o coelhinho no peito. Nunca mais tive notícias daquela gente, mas fico pensando nas alterações que aquela experiência pode ter causado no dia-a-dia de pessoas vizinhas, num bairro popular de uma cidade de interior. Foi um acontecimento muito especial, que deve ter marcado profundamente a vida daquelas pessoas.

Foi ainda naquele domingo, que conheci outras duas grandes amigas, a primeira Paula, jovem universitária paulista; ela e sua amiga Marisa, também tinham vindo de ônibus do Balneário, onde estavam hospedadas, até o Estaleiro. Paula é uma morena esguia, de tipo exótico, elas disseram-me que tinham estado na praia nos dois dias anteriores, tinham visto minhas pinturas, porém não tiveram coragem de pedir para serem pintadas. Paula disse que não queria ir embora para São Paulo sem realizar sua vontade, embora não lhes restasse muito tempo, devido ao horário do último ônibus de volta ao Balneário. Fiz duas pinturas bem rápidas, que ficaram razoavelmente bonitas.

Enquanto pintava Paula, um casal aproximou-se, e o marido perguntou-me se poderia pintar sua esposa; eram de Ourinhos, São Paulo, também estavam lá pela primeira vez, e gostariam de levar aquela recordação. Já estava ficando tarde, o céu começava a ficar encoberto, anunciando chuva, mas concordei em pintá-la. O nome dela era Tânia, sua pintura também foi rápida, mas muito bonita, principalmente por sua singela beleza, como fora com Paula.

A segunda grande amiga que conheci neste dia foi Irene, também paulista e antiga freqüentadora do Pinho, já tendo levado inclusive sua mãe e sua maninha, e que estava lá acompanhando seu amigo Valtinho; ela também quis ser pintada. Irene é pequenina na altura, mas uma tremenda pessoa por seu conteúdo. Quando comecei sua pintura, o céu já estava bastante encoberto, a temperatura caía rapidamente, e a claridade diminuía, bem como a quantidade de gente na praia.

Era o final dos feriados da Semana Santa, a maior parte das pessoas que tinham estado lá, por aquela hora estariam rodando pelas estradas, de volta a suas cidades; eu e Conceição só partiríamos na manhã seguinte. Tão entusiasmado estava, que nem mesmo me dei conta da questão de como voltar morro acima quando escurecesse; meia hora depois de iniciada a pintura, os primeiros pingos de chuva nos tiraram do transe, olhamos em volta e só então percebemos que estávamos absolutamente sós na areia. O bar do Yvan ainda estava de portas abertas, o garçom arrumava tudo para fechá-lo; fomos para lá e ele nos permitiu ficar, para terminar o trabalho. Irene deitou-se sobre uma das mesas, sob uma luminária, e tornamos a nos esquecer do tempo.

Quando terminei, a chuva tinha se transformado numa garoa miúda, e a noite estava escura como breu. A pintura estava bonita, tiramos uma única foto, sob um guarda-sol de palha, montado sobre uma mesa na areia em frente ao bar.

Ela estava hospedada no camping da praia, nos despedimos ali mesmo, e eu fiquei inteiramente só na areia. Olhando na direção do caminho que tinha que tomar, pude enxergar com relativa clareza até um pouco depois da portaria, a mais de duzentos metros de onde estava. As luzes acesas no camping e no restaurante garantiam este primeiro trecho da jornada, infelizmente o mais fácil também, pela praia. Ao chegar às primeiras pedras que separam o Pinho da prainha, tive de encarar a dura realidade da escuridão total, não podia ver nem meus próprios pés.

Completamente apavorado, e congelado não só pelo medo, como também e principalmente pela fina chuva tocada pelo vento, que molhava minha pele nua, pedi ajuda a meu anjo da guarda, exigindo dele máxima atenção ao caminho, e cuidado para guiar meus passos.

Foi pior que assistir a um festival de filmes de terror (eles me apavoram de verdade); acho que respirava uma única vez por minuto, e avançava lentamente rochas acima e rochas abaixo. Quando finalmente cheguei à base do costão, senti uma alegria incontida me tomar conta, e galguei com relativa facilidade os degraus até o platô, apesar de não vê-los. No alto do platô, parei para rezar agradecendo a Deus, e me acalmar; ali chegava um pouco da iluminação do camping da associação. O drama tinha acabado bem.

Um mês depois, estava com um de meus promotores, representando a empresa em que trabalhava numa feira de turismo em Porto Alegre; as mesas das operadoras estavam dispostas lado a lado, muito próximas umas das outras. Os agentes de viagens passavam de mesa em mesa, recebendo folheteria e informações operacionais. Conceição aproximou-se e eu fiz questão de atendê-la pessoalmente; ela estava muito bonita, com seus cabelos dourados, vestindo um conjunto rosa claro, com ares de garotinha.

Depois de fornecer-lhe folhetos e novidades turísticas, ela despediu-se e foi sentar-se à mesa ao lado, sendo atendida pelo representante de outra operadora. Neste momento chegou o Maurino, que também dirige uma agência de turismo, ele estava muito animado, saudando-me efusivamente. Depois dos cumprimentos, indiquei-lhe a mesa à direita, perguntando-lhe:

- Lembras daquela guria bonita ali ao lado?

Ela escutou a pergunta, e olhou para ele sorridente; que, completamente desconcertado, depois de algum tempo, disse:

- É realmente vergonhoso...; uma lástima..., mas não sei como posso não lembrar de uma moça tão bonita...! Desculpe...,

Completamente desligada do que se passava em volta, sorrindo solta, Conceição interrompeu-o subitamente, em voz alta o suficiente para ser ouvida por umas vinte pessoas nos arredores:

- Pudera! Nunca me viu vestida; sempre nua!

No mesmo instante pude sentir o peso do efeito de suas palavras no ambiente em volta de nós; todos os olhares se cruzaram sobre ela, alguém deixou cair um maço de folhetos à minha esquerda. Imediatamente, empurrado por uma presença de espírito que até desconhecia, emendei para ele, também em voz alta:

- Claro, seu distraído, vocês foram apresentados na Páscoa, lá na praia de Naturismo do Pinho, em Camboriú! Te lembras agora?

Enquanto os dois se abraçavam, senti que a tensão em volta havia se dissipado por completo, e as pessoas retomavam normalmente seus assuntos. Depois, fiquei observando-a de longe, enquanto seguia suas visitas, lembrando-me do momento em que se assustara ao perceber que estávamos rumando a uma área de prática do Naturismo, na manhã daquela quinta feira antes da Páscoa.

Ao dizer de forma tão inocente aquelas palavras sobre sua nudez, nem mesmo inconscientemente preocupada com as pessoas em volta, ela acabara de demonstrar a verdadeira essência do Naturismo. Fiquei mais feliz ainda, como orgulhoso, por ter sido eu quem, mesmo acidentalmente, a conduzira àquela experiência positiva.



VI

COMO ESTÁ O BRASIL NATURISTA

(atenção - este capítulo foi escrito há bastante tempo - será atualizado em breve)

Queremos que todos aqueles que sentirem vontade de nos ver ao natural, e testemunharem a felicidade de centenas de pessoas de todas as idades, venham visitar-nos. Não só no Pinho, mas também em Pedras Altas, município de Palhoça, em Santa Catarina, tornada oficial em 1991, onde se planeja construir uma vila naturista; na Praia do Olho de Boi, menos de três quilômetros a sudoeste do centro de Búzios, no estado do Rio de Janeiro, ainda selvagem e dotada de grande beleza; na Praia Brava, sete quilômetros a sudoeste do centro de Cabo Frio, também no estado do Rio, onde nudistas compartilham as ondas e as areias brancas com a alegre garotada do surf, embora seja importante observar que o atual prefeito tenha cancelado o decreto municipal que a oficializava como área de Naturismo; na recente conquista de abnegados conterrâneos de nossa musa inspiradora Luz del Fuego, a Praia de Barra Seca, distante sessenta quilômetros do centro de Linhares, no Espírito Santo; na Praia de Tambaba, única oficial no Nordeste, no município de Conde, bem próximo a João Pessoa, na Paraíba; ou ainda na mais nova delas, pivô de uma das mais recentes pândegas da crônica judiciária carioca, a Praia do Abricó, em pleno município do Rio de Janeiro, logo na descida para Grumari, para quem vem do Recreio dos Bandeirantes.

Já havia muito tempo que o Abricó era visitado por diversas pessoas que aproveitavam-se da proteção natural oferecida pelos rochedos, para curtirem as delícias do sol, da brisa e do mar despreconceituosamente nuas. Como resultado do insistente trabalho da Rio Nat, foi publicado no Diário Oficial da Cidade do Rio de Janeiro de primeiro de dezembro de 1994, o texto da resolução número sessenta e quatro, de trinta de novembro do mesmo ano, assinada pelo secretário Alfredo Hélio Syrkis, que reconhecia e oficializava a praia do Abricó como área liberada à prática do Naturismo.

No dia seis de dezembro, o juiz substituto da sétima Vara de Fazenda Pública do Rio, Moysés Cohen, decidiu viver seus "quinze minutos de glória" (espúria), vetando o decreto municipal e solicitando formalmente ao Comando Militar do Leste, repressão enérgica à nudez naquela praia. Em seu despacho, o respeitável magistrado tachou de "ridículas" as bundas expostas na praia; já em entrevista concedida à revista Isto É, publicada na edição número 1315, de quatorze de dezembro daquele ano, afirmou: "Bunda é uma das partes mais bonitas do corpo; de mulher, é claro".

O Exército, negou-se a atender à solicitação, alegando não ser sua função correr atrás de gente pelada. "Nem de gente vestida", afirmou o porta-voz do Comando Militar do Leste, Cel. Luiz Cesário da Silveira Filho, à reportagem da mesma revista, acrescentando que gostaria de conhecer a praia.

Ao Jornal do Brasil, publicado em dez de dezembro, o pudendo juiz declarou-se "homem normal e vigoroso", teceu elogios ao corpo feminino e condenou a legalização do Naturismo no Brasil, por achar a população brasileira incapaz de discernir o certo do errado; e acrescentou que tudo começaria com a nudez, depois haveria atos sexuais em público, aumentaria a quantidade de casas de tolerância, haveriam bacanais, orgias, tóxicos e mortes. Nosso virtuosíssimo baluarte da moral, acabou por confessar à repórter Beth Garcia, que teve curiosidade de conhecer as praias de nudismo da Côte d'Azur, na França, porque as coisas lá são diferentes por ser primeiro mundo.

No jornal O Globo, de dezoito de dezembro, duas cartas de leitores indignados, referiam-se ao acontecido; a primeira, assinada por Ana Cláudia Marques de Castro, do Rio, tem o seguinte teor:

"É estranho que, em plena época de combate à marginalidade no Rio, o juiz da sétima Vara de Fazenda Pública se dê ao luxo de pedir auxílio à Polícia e ao Exército a fim de combater os naturistas da praia do Abricó. O que deveria ser feito era, isto sim, tomar providências para que muros ou cercas fossem levantados no local, de modo que, a exemplo do que se faz em outras praias e campos de nudismo na Europa, os naturistas possam desfrutar seu lazer em paz, assegurando-lhes o direito de privacidade sem serem espreitados por curiosos e voyeurs".

A outra carta é assinada por Pedro Ricardo de Assis Ribeiro, também do Rio, que escreve:

"Antes de o juiz Cohen achar as nádegas alheias ridículas, alguém já tinha ouvido falar na praia do Abricó? Com certeza a resposta será negativa para a maioria das pessoas. Logo, não há como entender que um pedaço de praia de quinhentos metros de extensão, escondido pela mãe natureza, parecendo ter sido feita de propósito para se andar e banhar-se nu, tenha provocado tamanha indignação".

No dia vinte e três do mesmo mês, o Globo publicou a carta de Mário Monjardim, do Rio, que diz:

"Depois do escândalo da CPI do Orçamento com a total impunidade dos ladrões do povo: depois do escandaloso resultado do STF, inocentando o ex-presidente Collor; depois do despudor dos parlamentares em criar uma lei somente para manter o senador Lucena no Senado; depois de tudo isso, será que alguém pode chamar de escândalo a prática do Naturismo na praia do Abricó?"

Dias depois, a vinte e sete de dezembro, o jornal O Dia publicou uma nota, sob o título "Peladões", dizendo:

"No fim de semana do Natal, o Rio teve quinze assassinatos e vários assaltos. No meio de tantos problemas, a PM foi se preocupar em prender dois peladões que se divertiam na praia do Abricó. É a inversão total de prioridades".

Em qualquer um dos locais públicos citados acima, e reconhecidos pela Federação Brasileira de Naturismo, todas as pessoas que vierem em paz serão bem recebidas; não precisam tirar suas roupas, tampouco pagar nada para apreciar a beleza natural de cada um deles e ver como funciona o Naturismo. É justamente por sermos naturistas, que não temos vergonha ou receio de recebê-los nus, e esclarecer-lhes tudo sobre nossa filosofia de vida.

Se o visitante quiser ir embora depois de receber todas as informações, receberá nossos melhores votos de feliz viagem, com o convite para voltar sempre que desejar; se, por outro lado, preferir experimentar, que fique à vontade. O difícil, é superar os primeiros cinco minutos de nudez pública, quando a pessoa pensa que por estar nua, estará sendo observada, avaliada, julgada, desejada ou repelida, mas esta sensação não sobrevive mais do que a estes cinco minutos. Logo se percebe que ninguém nos olha de forma estranha ou diferente, e que se é apenas um a mais a estar nu, entre tantos. Costuma-se dizer aos visitantes, ao final da preleção: "Bem, vocês vieram de longe e agora estão às portas do paraíso; para entrar, basta girar a maçaneta (tirar a roupa)".

Além destes locais, há uma razoável quantidade de praias não oficiais, onde as condições de privacidade favorecem o desfrute da nudez, com os necessários cuidados. Também cresce no Brasil o número de associações e núcleos naturistas, que trabalham no sentido de obter liberações de áreas próprias, junto aos órgãos governamentais. É crescente também o número de prefeituras que procuram a FBN, ou estas associações locais, para iniciar estudos visando a implantação de áreas naturistas em seus municípios. Sem contar com a iniciativa privada, pois já dispomos em alguns estados, de uma boa quantidade, cada vez maior, de sítios e fazendas com facilidades para acampar e até pousadas, onde toda nudez é permitida e estimulada.

No fato de andarmos despidos nestes locais está a razão de desaparecer a curiosidade ostensiva, o "voyeur" gosta de espiar, não de ser espiado, assim como o exibicionista deseja uma platéia atenta, não pessoas desligadas de tais valores. São estes, exatamente, os pontos de partida para entender-se a naturalidade da nudez social; nela não há "voyeurismo", nem exibicionismo, as pessoas podem olhar-se umas às outras, da mesma forma como se olhariam em qualquer outro ambiente, vestidas ou não. Se para o naturista, fosse proibido olhar o corpo do próximo, não andaríamos nus.

Freqüentemente se escuta das pessoas ainda assustadas, que estão na portaria da praia, a um passo de despir-se, a seguinte frase:

- "Mas, na hora que eu tirar a roupa, vou morrer de vergonha..."

E o incentivo mais correto seria:

- "Certamente, por cinco ou dez minutos sim; mas, é bem melhor avermelhar por cinco minutos, que amarelar para toda a vida!"

Os naturistas cariocas, além das praias, alugam um sítio em Guaratiba, onde há pousada, piscina, e outros equipamentos; lá se reúnem nos finais de semana.

Os paulistas contam com o Núcleo Paulista de Naturismo, NPN, que dispõe de dois locais particulares, para seu lazer e reunião, o sítio Ibatiporã, cujo nome significa em tupi “é belo estar nu”, e que fica próximo à capital, em Porto Feliz; e o sítio Rincão, em Guaratinguetá, com um paradisíaco riacho, que forma cachoeiras em recantos de grande beleza natural. No Rincão, há pousada, camping, sauna, piscina, e se estão construindo casas de veraneio, além de programar intensa atividade social.

Os capixabas, e de quebra os mineiros, têm sua praia oficial, protegida e organizada pela NATES, Congregação Naturista do Estado do Espírito Santo; trata-se de Barra Seca, em Linhares.

Na Paraíba, as piscinas naturais de águas mornas, e toda a graça das praias nordestinas, embelezam ainda mais a praia de Tambaba, em Conde, a quarenta quilômetros de João Pessoa; com a organização da AAPT, Associação de Amigos da Praia de Tambaba e o apoio da prefeitura.

A oitenta quilômetros de Brasília, em pleno Planalto Central do Brasil, o mais alto recanto naturista do país, o sítio Norderney, em Formosa, Goiás.

No Pará, o GRUNAPA, Grupo Naturista do Pará, já está organizado. E já se pratica o Naturismo extra-oficialmente em outras praias brasileiras, embora sob o risco de ser processado por atentado ao pudor, caso alguém registre queixa na polícia, em locais como Trancoso e Arraial d'Ajuda, na Bahia, Galheta, em Florianópolis, e qualquer outro ponto, onde a ausência de movimento, aliada ao calor do sol, convidem a um banho de naturalidade.

No Paraná, o sítio Fulano de Tal também já conta com pousada, camping e piscina, e está localizado nos arredores da histórica cidade de Lapa, menos de uma hora ao sul de Curitiba.

O Rio Grande do Sul, conta hoje com o mais arrojado projeto naturista da América do Sul, a Colina do Sol, de propriedade da empresa Naturis, de Celso e Paula. Trata-se de 42 hectares sobre uma bela colina, a 80km de Porto Alegre, em Taquara; lá se está construindo uma verdadeira mini-cidade naturista.

Não deixe o preconceito vencer a razão, nada poderá acontecer-lhe de mal se você visitar o Pinho, ou outra praia ou centro naturista, ainda que apenas para olhar de perto a maneira como se relacionam e se divertem aqueles que lá estão. Vai ver que há pessoas fisicamente bonitas, tanto quanto não bonitas; idosas e novas; brancas, pretas, vermelhas, mestiças ou amarelas; ricas e pobres; tucanas, peemedebistas, petistas ou anarquistas; católicas, protestantes, atéias ou umbandistas; mas todas felizes por aceitarem-se exatamente como são, e serem aceitas por todos os que lá estejam, seus semelhantes.

E também não tenha medo, pode e deve mesmo levar sua família; vocês não irão presenciar nenhuma cena constrangedora, ou indecorosa. Serão muito bem recebidos, e nem precisarão tirar suas próprias roupas; a menos, é claro, que decidam participar, entrando na praia para descobrir a verdadeira liberdade de ser. Neste caso, sentirão o prazer de fazê-lo.

Sejam bem vindos ao Naturismo! Sejam bem vindos ao Paraíso!

- fim -



[1] Extraído do livro: Luz del Fuego - A Bailarina do Povo - Cristina Agostinho, Branca de Paula, Maria do Carmo Brandão - Editora Best Seller - 1994

[2] P.A.N.D.A.- Primera Associación Naturo Desnudista Argentina.

[3]A Vida Em Flor De Dona Beja - Romance do ciclo do povoamento nas Gerais - Agripa Vasconcelos - Editora Itatiaia - 4a. Edição, 1986

[4]Cartas do acervo de T. F. Lorgus, doadas à FBN. Lorgus representou o Brasil perante a INF durante muitos anos, embora pouco tenha feito de prático em prol do Naturismo no Brasil, além de ter seu nome e endereço no catálogo da instituição internacional, o que levou alguns pretendentes ao Naturismo a manter correspondência com ele.

[5] Para que se possa entender esta quantidade de dinheiro, posso lembrar que uma tulipa de chope no Castelinho (tradicional bar da Ipanema de então) custava Cr$ 0,75.

[6] Nome tradicional como eram conhecidas as vilas do Rio, estreitas ruas particulares ladeadas por casas de famílias de classe média baixa, usuais redutos portugueses. Algo que se assemelha bastante aos atuais condomínios horizontais.

[7]As cabines de primeira classe européias, possuem seis poltronas, cujos assentos, puxados para a frente, transformam-se numa confortável e única cama, que ocupa todo o espaço das mesmas.

[8]Editora Magister - 1a. edição - 1993

[9]Extraído da reportagem Turismo despido de preconceitos e roupas, de Maurício Zágari - Jornal do Brasil - quarta-feira, 19/10/94

[10]Assumindo a sua Personalidade - Leo Buscaglia - Editora Record - 9a edição - 1978